O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) pediu ao Ministério da Saúde uma “revisão urgente” do Guia Alimentar para a População Brasileira para que sejam retiradas recomendações contrárias a alimentos industrializados.
O guia, elaborado pela Saúde e válido desde 2014, quando a edição mais atualizada foi publicada, traz diretrizes sobre alimentação adequada e saudável para a população brasileira, com recomendações que privilegiam alimentos in natura ou pouco processados.
As orientações foram formuladas por técnicos do ministério em parceria com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e o apoio da Organização Panamericana da Saúde (Opas).
O pedido de alteração do documento pelo Mapa foi enviado à Saúde na terça-feira, 15, pouco menos de dois meses após a ministra Tereza Cristina realizar reunião com representantes da indústria de alimentos cuja pauta era justamente a revisão do guia alimentar. No dia 23 de julho, a titular do Mapa realizou videoconferência de uma hora com o presidente-executivo da Associação Brasileira de Indústria de Alimentos (Abia), João Dornellas.
Na nota técnica enviada pelo Mapa ao Ministério da Saúde e à qual o Estadão teve acesso, são feitas críticas a classificação de alimentos utilizada no guia, que separa os produtos em quatro grupos de acordo com seu nível de processamento. No primeiro grupo, estão os alimentos in natura ou minimamente processados (como vegetais, frutas, ovos, cereais). No segundo, estão os óleos, açúcar e sal. O terceiro grupo é dos processados, que inclui alimentos in natura que tiveram a adição de óleos, açúcar, sal ou outras substâncias para aumentar sua durabilidade, como conservas. Por fim, há os alimentos ultraprocessados, geralmente fabricados industrialmente e com substâncias como corantes e conservantes, como refrigerantes, biscoitos recheados e salgadinhos.
De acordo com o guia, esses alimentos – ricos em açúcares, sódio, gordura e outras composições industriais – devem ser evitados por aumentarem o risco de obesidade e outras doenças relacionadas a uma composição nutricional desbalanceada, como diabetes, problemas cardíacos e alguns tipos de câncer.
Apesar de vários estudos científicos já terem comprovado esses riscos, a nota técnica do Mapa argumenta que “pesquisas demonstram que não existem evidências de que o valor nutricional e a saudabilidade de um alimento estejam relacionados aos níveis de processamento”. A pasta diz ainda que a classificação de alimentos ultraprocessados como nutricionalmente desbalanceados é “uma incoerência”.
Contrariando especialistas em nutrição e saúde pública, o Mapa chega a criticar os alimentos in natura e as preparações culinárias feitas em casa, afirmando que a “regra de ouro” trazida pelo guia alimentar (de evitar alimentos ultraprocessados) não alerta que uma alimentação que utiliza “sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias é perigosa”. Para o Mapa, o guia “não orienta que o uso apenas desses alimentos em consumo excessivo está associado a doenças do coração, obesidade e outras doenças crônicas, de forma semelhante as outras categorias de alimentos”.
O Ministério da Agricultura afirma também que a classificação “apenas confunde” a população, diminuindo “a autonomia das escolhas alimentares” e solicita ao Ministério da Saúde a “imediata retirada” do guia das menções à classificação dos alimentos por nível de processamento, o que implicaria na remoção das menções aos riscos dos alimentos industrializados.
Na conclusão da nota técnica, o Mapa chama ainda o guia alimentar brasileiro de “um dos piores” do mundo, sem citar evidências científicas e contrariando avaliação feita por instituições internacionais sobre o documento brasileiro. De acordo com o Nupens/USP, que ajudou o ministério a formular as diretrizes, organismos técnicos das Nações Unidas, como FAO, OMS e Unicef “consideram o guia brasileiro um exemplo a ser seguido”.
O grupo de pesquisadores diz ainda que as diretrizes do País inspiraram os guias alimentares de nações como Canadá, França e Uruguai e cita um estudo publicado no ano passado na revista científica Frontiers in Sustainable Food Systems que elegeu o guia alimentar brasileiro como “o que melhor atendia a critérios previamente estipulados quanto à promoção da saúde humana, do meio ambiente, da economia e da vida política e sociocultural”.
Em nota divulgada nesta quinta-feira, 17, o Nupens/USP classificou os argumentos do Mapa como frágeis e inconsistentes, destacando que a classificação de alimentos por nível de processamento já foi utilizada em mais de 400 estudos científicos. Os pesquisadores ressaltaram ainda que cinco revisões sistemáticas (pesquisas que reúnem evidências de vários estudos) “demonstraram a associação inequívoca do consumo dos alimentos ultraprocessados com o risco de doenças crônicas de grande importância epidemiológica no Brasil e na maior parte dos países, como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e acidentes vasculares cerebrais”.
O Nupens/USP afirmou ser “absurda e desrespeitosa” a avaliação do guia alimentar feito pelo Mapa e disse confiar o que o Ministério da Saúde e a sociedade brasileira “saberão responder à altura ao que se configura como um descabido ataque à saúde e à segurança alimentar e nutricional do nosso povo”.
O Estadão procurou o Mapa para comentar as motivações do documento e a influência da indústria alimentícia no pedido de revisão, mas ainda não obteve resposta. O Ministério da Saúde foi questionado pela reportagem se pretende adotar as alterações solicitadas pela Agricultura, mas também não se posicionou.
Por Fabiana Cambricoli
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