Para Marcos Nobre, professor de Filosofia Política na Universidade de Campinas (Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), a fidelidade do presidente Jair Bolsonaro a suas “convicções autoritárias” o levaram a instituir um “governo de guerra” em reação à pandemia do coronavírus. Nobre acaba de lançar o e-book Ponto Final – A Guerra de Bolsonaro contra a democracia (Editora Todavia, 80 páginas, R$ 30). Segundo ele, a ação do Supremo Tribunal Federal contra integrantes do “gabinete do ódio” foi a reação mais efetiva das instituições, até aqui, para barrar esse “projeto autoritário”.
O senhor sustenta que o presidente Jair Bolsonaro segue uma lógica política e que o método dele é caos. Que lógica é essa?
Todas as reações de Bolsonaro têm a ver com a fidelidade a suas convicções autoritárias. Nisso, ele é um político. Normalmente, políticos autoritários não são tomados como bufões, burros, loucos até que fazem o estrago quando conseguem implantar o autoritarismo que perseguem. Chamá-lo de burro ou louco reforça Bolsonaro, na medida que o projeto dele é desobrigar as pessoas de pensar. Também o desresponsabiliza porque um burro ou um louco não é responsável pelos seus atos. Por fim, reforça a imagem que o Bolsonaro tenta passar de ser um não-político. A gente precisa fazer um esforço para entender a racionalidade tétrica de Bolsonaro para tentar combatê-la.
Que racionalidade orientou o presidente a instituir um “governo de guerra”, em vez de um “governo de união nacional”, como fizeram líderes de outros países?
Bolsonaro não fez isso porque ele se elegeu como um líder antissistema. E, como todo líder antissistema autoritário, o objetivo dele é destruir o sistema, e não geri-lo. Uma característica importante do Bolsonaro é que, para ele, o sistema é a mesma coisa que a democracia. Para ele, a verdadeira democracia é a ditadura militar. Quando há a pandemia, você precisa gerir o sistema como se estivesse numa situação de guerra, reorganizar os ministérios, a produção industrial, fazer um plano que envolva todos os poderes. Mas, se fizesse isso, ele abriria mão do seu projeto autoritário que estava só no início até a chegada da pandemia. Na minha leitura, o primeiro mandato seria de destruição das instituições democráticas. Num segundo mandato, ele iria implantar, de fato, o autoritarismo.
Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal desencadeou uma operação da Polícia Federal, como parte do inquérito sobre fake news, contra integrantes do “gabinete do ódio”. Qual é a eficácia desse tipo de ação por parte das instituições, já que ela faz parte de uma investigação controversa, desde o seu início, num período que o senhor caracteriza no livro como de “colapso institucional”?
Uma instituição estar em colapso não significa que ela não está funcionando. Quer dizer que está funcionando em condições extremas, muitas vezes de maneira disfuncional, sem cumprir seus objetivos. O inquérito das fake news é um exemplo perfeito para demonstrar esse colapso institucional. Na sua origem, esse inquérito foi classificado, quase unanimemente entre os juristas, como algo inédito e sem amparo na legislação. Isso é um indício de colapso institucional. Mas o colapso maior ocorre quando Bolsonaro tenta se apossar da Polícia Federal, com a ideia de que um órgão de Estado é um instrumento do governante. O ministro Alexandre de Moraes foi o primeiro a tomar uma atitude efetiva para barrar o projeto autoritário de Bolsonaro. Foi o primeiro que não fez nota de repúdio, manifesto, reunião virtual e agiu para atingir essa rede de desinformação, calúnia e difamação, pilar de sustentação de Bolsonaro. O ministro Alexandre de Moraes foi direto na ferida e usou mecanismos institucionais. Nós não podemos combater com armas normais uma situação anormal.
Depois da ação do STF, Bolsonaro elevou a retórica de confrontação, disse que não iria cumprir “ordens absurdas”, e seu filho Eduardo falou em ruptura institucional. Como avalia a possibilidade de haver essa ruptura?
Nessa escalada retórica, há um lado diversionista, que é tirar o foco da pandemia, porque Bolsonaro sabe que vai ser responsabilizado pela falta de resposta do País, pela recessão econômica e pelo agravamento das duas pela crise política que ele produziu. O outro lado é: qual é a probabilidade de isso acontecer? No momento, como golpe organizado, ainda parece baixa. Isso não impede que haja atos descoordenados e isolados por parte de uma base fanática de Bolsonaro, armada e militarista.
O senhor se refere no livro à grande presença de militares em funções na máquina pública federal como um “partido militar”, que ajuda a vertebrar o governo, pela falta de partido e quadros do bolsonarismo. Como vê o papel das Forças Armadas diante das ameaças de ruptura?
A parte dos militares que aceitou ir para o governo, da ativa ou da reserva, representa um movimento ansiado há muito tempo por eles, que participam da vida política brasileira desde a proclamação da República. Os militares sentiram que, após a redemocratização, foram alijados dos círculos de decisão política por 35 anos. Então, qual foi a estratégia das Forças Armadas? Primeiro, recuperar sua imagem, que estava muito desgastada no final da ditadura militar. Em segundo lugar, investir muito em formação, especialmente das patentes superiores. Há uma parte relevante das Forças Armadas que diz que os militares querem participar de governos civis, democráticos, como quaisquer outros integrantes de instituições de Estado. É claro que tem uma parte que acha que o período do regime militar é o melhor modelo para o País. Os militares não são um bloco unitário. É preciso pensar nessas divisões internas porque não haverá solução para afastar o risco autoritário representado por Bolsonaro sem uma negociação com as Forças Armadas. Não há também saída sem que ela passe pelo vice-presidente Hamilton Mourão.
Pesquisas recentes mostram que Bolsonaro conserva o apoio de cerca de um terço da população. Sua estratégia pode estar dando certo?
Desde o início do governo Bolsonaro, houve uma divisão do eleitorado em três terços: um terço de aprovação, um terço de rejeição e um terço que nem aprova nem rejeita. Isso levava a uma lógica que imobilizava a política brasileira, porque nenhum dos terços conversava com outro. Cada terço só fazia esforço para fidelizar seu próprio terço. Isso era algo que estava levando Bolsonaro à reeleição porque ele vive também da divisão do campo democrático. As pesquisas mostram que foi rompida essa lógica, porque houve um aumento da rejeição a Bolsonaro e uma diminuição da parcela que não o aprova nem o rejeita. Acho que isso é uma tendência e que o apoio a Bolsonaro tende a se reduzir ao núcleo mais fanático. Ele é um presidente que caminha para a inviabilidade. O governo de guerra está servindo para ele ganhar tempo, em cima de uma pilha de cadáveres, para negociar com o Centrão na Câmara para que não seja aberto um processo de impeachment.
O apoio do Centrão é firme?
O Centrão apoia qualquer governo até que ele se inviabilize.
O senhor diz que ainda não é o momento do impeachment de Bolsonaro. Por quê?
Há várias razões imediatas para o impeachment de Bolsonaro, mas a questão é se ele é viável e vai resolver o nosso problema estrutural. É preciso fazer um processo de impeachment que seja um instrumento de regeneração da democracia, das instituições, da convivência e da competição política. As condições para esse impeachment regenerador são muito exigentes. Forças políticas que se atacaram de uma maneira destrutiva nos últimos anos têm de sentar, conversar e negociar questões de procedimento político e de conteúdo. É muito difícil essa negociação, mas ela é possível, e sua construção já começou, ainda que de forma tímida e incipiente. Se não houver essa ampla concertação, será como jogar gasolina na fogueira do caos que Bolsonaro constrói cotidianamente. Isso significa o seguinte: o campo da esquerda tem de dizer para o da direita que, se não houver essa repactuação, ela pode até ganhar a eleição em 2022, mas não vai governar. E vice-versa.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Por Guilherme Evelin
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