Ao contrário do que se esperava, a segunda noite de desfiles das escolas de samba do Rio teve nível técnico melhor do que a primeira. Três das quatro primeiras escolas a desfilar se credenciaram para o título: Vila Isabel, Salgueiro e Unidos da Tijuca. Na disputa pelo campeonato, elas se somam a Viradouro e Portela, que se destacaram na primeira noite. A apuração acontece na tarde da quarta-feira, 26.
Entre as demais escolas da segunda noite, a São Clemente fez o desfile divertido que se esperava dela, mas com a única pretensão – aparentemente alcançada – de se manter na elite, e a Mocidade – escola que, pelo enredo, gerou mais expectativa nessa segunda noite – homenageou a cantora Elza Soares e emocionou, mas teve problemas pontuais – de evolução, por exemplo. A Beija-Flor começou muito bem seu desfile, mas depois os integrantes precisaram correr para terminar o desfile no prazo permitido de 70 minutos.
O sorteio que definiu a ordem das escolas concentrou no domingo as escolas consideradas mais competitivas atualmente. Três das quatro primeiras colocadas de 2019 se apresentaram nesse dia: a campeã Mangueira, a vice Unidos do Viradouro e a quarta colocada, Portela. As três fizeram ótimos desfiles, mas Viradouro e Portela se destacaram mais. As demais escolas da primeira noite sofreram com problemas técnicos, falta de dinheiro ou ambos.
Vila Isabel
A escola mais bem colocada de 2019 a desfilar na segunda noite foi a Vila Isabel, terceira melhor naquele concurso. Em um ano repleto de enredos não patrocinados e cheios de críticas sociais, a Vila Isabel despontou como candidata ao título em 2020 justamente com um tema que se pretendia patrocinado e com o qual até a semana passada a direção da escola reclamava que tivera prejuízo.
Em maio de 2019, a escola da zona norte do Rio firmou um termo de cooperação com o governo de Brasília: faria em 2020 um enredo em homenagem aos 60 anos de fundação de Brasília e ofereceria cursos de capacitação para as escolas de samba da capital federal, que não tem desfiles oficiais há seis anos. Em troca, o governo de Brasília ajudaria a escola a captar verbas para o desfile por meio da Lei de Incentivo à Cultura.
Essa lei permite que empresas e pessoas físicas destinem para projetos culturais o dinheiro que usariam para pagar impostos. O projeto apresentado pela Vila Isabel previa captação de R$ 4,99 milhões. Ao menos até o dia 17 de fevereiro, porém, nenhum tostão havia sido arrecadado por meio dessa lei. O enredo acabou deixando Brasília em segundo plano: a partir de um conto indígena, a escola apresentou a formação dos povos das regiões brasileiras e, ao final, a fundação de Brasília. A capital federal já havia sido enredo em 2010, quando completou 50 anos, e naquela ocasião rendeu o terceiro lugar à Beija-Flor.
Antes de tudo, a Vila Isabel inovou ao criar o posto de rainha da escola – normalmente, as mulheres famosas que desfilam à frente dos ritmistas recebem o título de rainha da bateria, e não da escola inteira. A apresentadora Sabrina Sato, que foi rainha da bateria da Vila Isabel durante nove anos, de 2011 a 2019, neste ano foi substituída pela dançarina e modelo Aline Riscado, mas desfilou à frente da escola, acompanhada por Martinho da Vila, presidente de honra da Vila Isabel. A dupla causou frisson na plateia e ofuscou a comissão de frente, que vinha logo em seguida.
Com carros alegóricos e fantasias luxuosas e com excelente acabamento, a escola também contou com um samba animado, cujo refrão fazia uma ode a si mesma: “Sou da Vila, não tem jeito / Fazer samba é meu papel / Fiz do chão do Boulevard meu céu”, diz a letra.
A escola terminou o desfile aos gritos de “é campeã”. “Neste ano todo mundo resolveu caprichar em tudo. Então a Vila veio no capricho e na alegria, e contagiou. Sábado eu estou aí”, garantiu Martinho da Vila, referindo-se ao desfile das campeãs, que ocorre no próximo sábado e reúne as seis escolas mais bem colocadas do ano.
São Clemente
Antes dela desfilou a São Clemente, que levou para a avenida o enredo “O Conto do Vigário”, sobre as enganações a que o povo brasileiro foi submetido ao longo da história e às tentativas de se dar bem enganando os outros. O enredo foi exatamente igual ao apresentado pela Acadêmicos de Vigário Geral, que integra a segunda divisão e desfilou na última sexta-feira, 21.
Naquele desfile, o destaque foi um carro alegórico que representava o presidente da República, Jair Bolsonaro, como o palhaço Bozo fazendo com a mão o símbolo de uma arma.
Desta vez, Bolsonaro não foi representado em escultura, mas pelo humorista Marcelo Adnet, que é um dos autores do samba-enredo da São Clemente, cheio de menções a fake news e a laranjas.
O humorista desfilou no quarto carro alegórico e atravessou a Sapucaí fazendo imitações de Bolsonaro. Além de jogar laranjas para a plateia, fez uma série de gestos tradicionais do presidente, como a ‘arma’ com as mãos, a continência militar e até desajeitadas flexões de braço.
“O brasileiro é muito bom de fazer piada com a sua própria desgraça”, disse Adnet ao final do desfile. “O conto do vigário é isso: uma coisa que começa engraçada, uma malandragem inocente, que depois é institucionalizado e vira uma coisa mais séria”, refletiu.
Salgueiro
Logo após a Vila desfilou o Salgueiro, escola frequente candidata ao título, desta vez apresentando a história de Benjamim de Oliveira (1870-1954), o primeiro palhaço negro do Brasil.
Assim como a Vila, o Salgueiro apresentou alegorias e fantasias luxuosas, e uma crítica social mais ácida: o palhaço representado no último carro alegórico movimentava o braço para esconder o rosto negro com uma máscara branca.
Entre as diversas celebridades que desfilaram na escola da zona norte, a bateria e seu redor reuniam duas das mais cultuadas: a rainha (da bateria) Viviane Araújo e o cantor Xande de Pilares, que não cantou, mas acompanhou os intérpretes Émerson Dias e Quinho.
Unidos da Tijuca
Quarta escola a se apresentar, a Unidos da Tijuca discorreu sobre arquitetura, tendo como mote a cidade do Rio de Janeiro, que em 2019 recebeu da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) o título de primeira capital mundial da arquitetura e neste ano vai sediar o Congresso Mundial de Arquitetos. O desfile marcou o retorno do carnavalesco Paulo Barros à escola onde ele se tornou famoso – foi campeão em 2010, 2012 e 2014, e desde 2015 trabalhou em outras agremiações.
Não faltaram alas coreografadas nem carros alegóricos teatralizados, onde a ação é produzida por um grande conjunto de pessoas. Essas são duas das principais características de Barros.
Enquanto o samba, que tem entre os compositores Dudu Nobre e Jorge Aragão, focou na arquitetura do cotidiano do Morro do Borel, favela berço da escola, o desfile exibiu alas e carros monumentais, que discorriam sobre a história da arquitetura, incluindo as pirâmides do Egito e o coliseu romano. O Cristo Redentor foi retratado duas vezes – na primeira, em construção, ele girava.
Mocidade
A Mocidade prestou homenagem à cantora Elza Soares. Criada na Vila Vintém, favela da zona oeste do Rio que é o berço da escola de samba, a artista de 89 anos desfilou em um trono, no último carro alegórico, e foi aclamada pelo público.
Com um dos sambas mais aclamados do ano, fácil de cantar e carregado de drama – como a vida de Elza – na interpretação de Wander Pires, a escola levantou a plateia pela força do enredo. Emocionada, a cantora Sandra de Sá, uma das autoras da música, era das mais empolgadas. Mas o desfile não foi tão bom quanto a trilha sonora.
Beija-Flor
A Beija-Flor encerrou a segunda noite de desfiles no Rio de Janeiro discorrendo sobre os trajetos percorridos pela humanidade – para conquistar territórios ou encontrar a terra prometida, por exemplo – e as ruas famosas do mundo, como Abbey Road, em Londres, e El Caminito, em Buenos Aires. Mas a escola precisou correr e deve perder pontos em quesitos como evolução.
Por Caio Sartori e Fábio Grellet
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