“Salvador Allende será deposto pelos mesmos motivos que João Goulart foi deposto no Brasil.” A frase não foi dita por um opositor chileno, mas pelo presidente do Brasil, Emílio Garrastazu Médici, na Casa Branca, em conversa com o americano Richard Nixon.
O ano era 1971 e Allende, eleito um ano antes, representava uma ameaça aos interesses dos EUA na América do Sul – o Chile era o primeiro país da região a eleger um socialista.
Os registros da conversa, obtidos pelo Arquivo de Segurança Nacional dos EUA, mostram Nixon oferecendo recursos ao Brasil, defendendo que os dois países tentem “prevenir novos Allendes e Castros” e revelam um papel até então pouco conhecido da ditadura brasileira interferindo na política interna de outros países.
“A narrativa tradicional de intervenção e guerra secreta na América Latina se concentra nos EUA e na CIA, mas operações militares secretas foram realizadas em nome do povo brasileiro sem o seu conhecimento”, afirma o pesquisador Peter Kornbluh em entrevista ao Estadão.
Qual foi o papel do Brasil no golpe contra Allende em 1973?
O regime militar brasileiro, agindo de forma independente dos EUA, mas por motivos semelhantes, secretamente interveio nos assuntos políticos do Chile para promover um golpe contra o governo democraticamente eleito de Allende. Durante reunião na Casa Branca, Médici disse a Nixon que “Allende seria deposto pelos mesmos motivos que Goulart havia sido deposto no Brasil”.
O presidente perguntou se Médici achava que as Forças Armadas chilenas eram capazes de derrubar Allende. Médici respondeu que sim, acrescentando que o Brasil estava trocando agentes com os chilenos, e deixou claro que o Brasil estava trabalhando para esse fim.
Há registros dos contatos entre militares brasileiros e os americanos detalhando as ações?
Não sabemos os detalhes dos contatos do Brasil e do apoio aos militares chilenos, à medida que a conspiração contra Allende avançava. Ainda não obtivemos nenhuma comunicação secreta entre Henry Kissinger e o ministro das Relações Exteriores, Gibson Barbosa, ou o coronel Manso Netto, que Nixon e Médici designaram como representantes para as mensagens entre os dois sobre questões muito secretas, como a conspiração de golpe no Chile.
Também não sabemos se a oferta de Nixon para fornecer recursos secretos e outras formas de assistência para o esforço do Brasil para fomentar um golpe no Chile foi aceita e até que ponto a inteligência militar brasileira e os agentes da inteligência dos EUA coordenaram suas ações. Documentos relacionados a essa história permanecem segredos de Estado.
Muito se fala das intervenções dos EUA na região, mas pouco se fala do papel do Brasil. Por quê?
Há muito mais a saber sobre o papel intervencionista do Brasil na região durante a ditadura militar. Além do Chile, há a intervenção no Uruguai, na Bolívia e seu papel nas sinistras e assassinas operações transfronteiriças do Plano Condor.
A narrativa de intervenção hegemônica e guerra secreta na América Latina tem se concentrado nos EUA e na CIA. Mas sem um registro completo do exercício hegemônico de poder pelo Brasil no Cone Sul, essa história permanecerá incompleta. O acesso aos arquivos de inteligência brasileiros é fundamental. É uma história que permanece não contada.
Por que o foco nos EUA?
Primeiro, os EUA merecem ser denunciados por sua intervenção na América Latina. O segundo ponto é que o sistema de liberdade de informações nos EUA permitiu tornar públicos inúmeros documentos. A história foi contada com base nesses documentos, com foco nos EUA. Arquivos equivalentes de países como Brasil continuam secretos ou talvez foram destruídos. Há menos chance de analisar e conhecer essa história, mas de maneira lenta ela está emergindo.
O que precisa ser contado?
A história completa do papel do Brasil no Chile não foi contada. Há alguns historiadores que estão trabalhando nesse assunto, mas não têm acesso aos documentos de inteligência ou militares. Não sabemos em que grau os militares brasileiros estiveram em contato com oficiais chilenos após as eleições de Allende (novembro de 1970).
Não sabemos quão longe foi a colaboração após o encontro com Nixon, em 1971. Não temos o arquivo ou a documentação das operações do Brasil no Chile, na Bolívia, no Uruguai. O Brasil teve um papel ativo de intervencionismo em sua política externa durante a ditadura militar, chegando ao nível de interferir nos assuntos de outros países.
O que mais se sabe da participação do Brasil no golpe no Chile?
A conversa de Nixon e Médici ocorre no fim de 1971. E o golpe foi em 1973. Nixon via a ditadura no Brasil como aliada para sabotar o governo de Allende desde o início. Um dia depois que Allende chegou ao poder, em 6 de novembro de 1970, Nixon se encontra com um aliado da área de segurança e diz que os EUA não podem permitir que Allende consiga criar um modelo de governo.
Diz que não era para se importar com o que as democracias na América Latina diziam, e sim com o que Brasil e Argentina diziam. Acredita-se que o Brasil tenha enviado agentes para o Chile logo depois do golpe para interrogar e encontrar esquerdistas que fugiram do Brasil e estavam morando no Chile durante o governo de Allende. Há relatos de presos políticos e torturados que falavam português.
As provas da atuação do Brasil foram destruídas?
A narrativa prevalente é a que os militares destruíram os documentos da repressão interna e das operações externas. Muitas ditaduras na América Latina disseram isso por anos como forma de manter essa história longe dos cidadãos. Pode ser que alguns documentos tenham sido destruídos, mas é muito difícil acabar com todos.
Há comunicações com outros países. Eles podem ter os registros. Há trocas de contatos com outras agências e instituições do governo. Tenho grande fé que mais documentos aparecerão e entenderemos melhor o que aconteceu. O papel do Brasil está vindo à tona. Seria muito mais difícil que os líderes atuais do Brasil fizessem esse revisionismo da história da ditadura se todos os registros da repressão fossem conhecidos.
Nixon disse a Médici que Brasil e EUA deveriam evitar novos Allendes e Castros. Qual o significado dessa declaração?
Nixon via Médici como um amigo, aliado e colaborador em um esforço compartilhado para conter as forças políticas progressistas na América Latina e reverter a Revolução Cubana.
Nixon até reconheceu que os brasileiros estavam melhor posicionados do que os EUA para fazer avançar essa agenda geopolítica. Ele disse a Médici que “esperava que pudéssemos cooperar estreitamente, pois havia muitas coisas que o Brasil, como país sul-americano, poderia fazer e os EUA não”.
Que outros indícios há da relação entre Médici e Nixon?
O presidente dos EUA ficou tão impressionado com esta nova aliança diplomática que, após a reunião, enviou o general Vernon Walters para reiterar a Médici que Nixon “estava muito impressionado com Médici e encantado com o relacionamento que eles estabeleceram e a proximidade de seus pontos de vista”.
Durante a reunião, Nixon e Médici discutiram a derrubada de Allende, a contrarrevolução em Cuba, as operações contra o populista líder militar do Peru e o apoio ao novo regime militar na Bolívia, à medida que ele se consolidava. Os dois também discutiram as operações políticas secretas do Brasil para derrotar a Frente Ampla nas eleições de 1971 no Uruguai.
Apenas 11 dias depois de se encontrar com Médici, Nixon se encontrou com o primeiro-ministro britânico, Edward Heath, e disse a ele que o Brasil apoiava os esforços dos EUA para minar Cuba e enfraquecer a esquerda na América Latina. “Nossa posição é apoiada pelo Brasil, que é a chave para o futuro”, informou Nixon a Heath. “Os brasileiros ajudaram a fraudar as eleições no Uruguai.”
O memorando sobre a conversa de Nixon com o diretor da CIA, Richard Helms, é o único registro de um presidente americano ordenando um golpe contra um líder eleito. Qual é a importância deste documento para a história americana?
O memorando Helms é uma prova cabal de que a CIA é uma ferramenta dos presidentes para afirmar sua vontade imperial em outras partes do mundo – em países como Chile, Brasil, Irã, Cuba, independentemente do direito internacional, dos princípios de soberania e autodeterminação. Antes do escândalo da intervenção secreta da CIA no Chile, os presidentes dos EUA se escondiam atrás de um muro de negação.
Mas essas negações se tornaram menos plausíveis após a divulgação deste documento que registra as palavras da boca do presidente. Após o escândalo do Chile, o Senado dos EUA investigou a história de má conduta da CIA e a autorização presidencial. O Congresso aprovou novos regulamentos sobre operações secretas. Desde então, elas devem ser iniciadas por um memorando presidencial formal, embora secreto, de notificação aos comitês de inteligência do Congresso. Desde o lançamento do memorando Helms, os presidentes dos EUA não podem negar as operações secretas, caso elas sejam expostas.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Por Paulo Beraldo
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