O governo Jair Bolsonaro enviou agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) à Conferência do Clima das Nações Unidas (COP-25), realizada em dezembro do ano passado, em Madri, na Espanha. Durante a reunião, segundo apurou o Estadão, eles monitoraram organizações não governamentais (ONGs), integrantes da comitiva brasileira e representantes de delegações estrangeiras.
A presença da Abin no principal evento sobre mudanças climáticas do mundo é incomum. O Estadão consultou as listas oficiais das delegações nas edições da COP de 2013 a 2018, em posse das Nações Unidas. Em nenhuma delas aparece o nome de representantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) ou da Abin. Fontes acostumadas a participar do evento disseram ser a primeira vez.
O envio dos agentes secretos à conferência é mais uma evidência da postura conflituosa do governo Bolsonaro com organismos internacionais, ONGs e setores da administração federal ligados ao meio ambiente. Lideranças sociais e funcionários públicos com atuação em fóruns internacionais são mantidos sob vigilância.
No ano passado, o Estadão já havia revelado que o Planalto monitorou os preparativos do Sínodo da Amazônia, organizado pela Igreja Católica. O governo vê orquestração de opositores nas críticas internacionais à sua atuação na área ambiental, com o objetivo de miná-lo, além de uma tentativa de invasão à soberania nacional, de olho nas riquezas naturais da Amazônia.
O Brasil deveria ter sido o organizador da COP-25, mas, logo após sua eleição, Bolsonaro abriu mão da prerrogativa. Ele alegou dificuldades financeiras e divergências da agenda, para surpresa da Organização das Nações Unidas (ONU), que acabou transferindo o evento para a Espanha.
De última hora, porém, o governo Bolsonaro incluiu uma equipe com nomes experientes em inteligência na delegação brasileira despachada para Madri. A reportagem identificou quatro deles na lista oficial de participantes. Elaborado pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, o documento foi obtido por meio da Lei de Acesso à Informação. Os nomes foram fornecidos à COP pelo Itamaraty.
Todos eles foram credenciados como parte da equipe do GSI da Presidência da República, cujo ministro-chefe é o general da reserva do Exército Augusto Heleno, sem que o vínculo com a Abin fosse informado à ONU. No documento oficial do evento foram identificados como “analistas”.
A equipe é composta por Bruno Batista Rodrigues Pereira, ex-superintendente regional da Abin no Pará; Marcelo Donnabella Bastos, ex-secretário adjunto de Infraestrutura e Meio ambiente do Estado de São Paulo; Lília de Souza Magalhães e Pedro Nascimento Silveira. Os três últimos ingressaram na Abin no concurso de 2018.
O Estadão tentou desde quarta-feira ouvir a Abin e o GSI sobre o que motivou a presença de quatro agentes secretos no evento, quais as atividades que eles desenvolveram, os relatórios que produziram e qual o cargo deles no governo, mas não obteve resposta. A ONU também não se manifestou.
A comitiva do governo contou, ainda, com o adido civil na embaixada brasileira em Madri, José Carlos Martins da Cunha, que foi diretor da Abin, e o coronel Adriano de Souza Azevedo, assessor de Planejamento e Assuntos Estratégicos na Secretaria Executiva do GSI, entre outros.
A reportagem ouviu um dos agentes da Abin. Sob condição de anonimato, ele disse que o trabalho na COP teve como objetivo captar as críticas ao governo Bolsonaro, sobretudo com relação à Amazônia, para “defender os interesses do País”. Esse servidor negou que ambientalistas tenham sido fichados, mas confirmou a presença da equipe de inteligência em atividades do pavilhão do Brasil e de países estrangeiros. Admitiu que campanhas promovidas por ONGs eram motivo de preocupação.
Uma fonte da Abin relatou que esses agentes se dedicam à temática ambiental na agência e são considerados oficiais recém-chegados, ou seja, de concursos recentes. Eles não aparecem como servidores do governo em publicações no Diário Oficial da União, tampouco no Portal da Transparência. As despesas de viagem também não são vinculadas a seus nomes. Isso é praxe e está dentro das normas legais. Em razão da natureza sigilosa das atividades, os servidores da Abin têm a identidade preservada e são comumente registrados apenas por um número de matrícula nas publicações oficiais.
Crachás
Credenciados como parte da delegação, os oficiais de inteligência tiveram amplo acesso na COP. Na Conferência do Clima, os crachás são diferenciados por cores, o que ajuda a separar integrantes de governos de jornalistas, observadores internacionais, representantes da sociedade civil e funcionários da ONU.
Obtida por eles, a credencial com tarja rosa e a palavra Party (no sentido de parte) é a que abre mais portas e dá até mesmo acesso a reuniões de negociação fechadas aos demais. Nelas, negociadores diplomáticos dos governos discutem os termos dos textos sobre a implementação do Acordo de Paris.
O Estadão apurou que os agentes da Abin acompanharam atentamente as atividades no estande organizado pelas ONGs dentro da COP 25. O pavilhão Brazil Climate Action Hub recebeu debates e palestras durante duas semanas de eventos.
Quatro fontes diferentes confirmaram à reportagem que souberam, ainda em Madri, da presença dos agentes nos corredores da COP, o que causou apreensão e surpresa entre os brasileiros. Um integrante da comitiva relatou que os agentes da Abin não se apresentaram formalmente ao restante da delegação. Outros dois disseram que foram interpelados pelos “representantes do GSI” sobre atividades no pavilhão. Essas fontes suspeitam que os alvos, além das ONGs, eram pessoas da própria delegação oficial, formada majoritariamente por servidores de carreira ou comissionados enviados pelos ministérios e por governos.
Habitué de COPs, o pesquisador Carlos Rittl, ex-secretário executivo do Observatório do Clima, afirmou que não havia necessidade de monitorar as atividades das ONGs, pois os debates eram abertos e as manifestações críticas ao governo, conhecidas. Rittl contou ter ouvido o rumor da presença de agentes quando já estava em Madri e, imediatamente, fez um pente-fino. Buscava nomes desconhecidos, uma vez que o corpo técnico de servidores ligados ao tema costuma se repetir.
“Filtrei alguns nomes, mas acabei não descobrindo. A agenda em Madri era muito intensa, por toda a atenção que a política antiambiental do governo brasileiro recebeu”, afirmou Rittl. “Talvez o papel deles fosse monitorar tanto a sociedade civil quanto a delegação brasileira. A sociedade civil não tem nada a esconder, embora, desde o início, o governo tente nos monitorar e controlar. Imagino que os servidores de carreira que se dedicam a processos internacionais tenham ficado desconfortáveis. Eles negociam soluções complexas que tratam de interesses estratégicos. O maior constrangimento é para essas pessoas que representam seu país sob ciência de vigilância. É um absurdo. Recebem mandato para negociar sob observação. Qual o propósito?” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Por Felipe Frazão
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