A decisão da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre um inquérito envolvendo parlamentares expôs que a magistrada rechaça a tese do chamado “mandato cruzado”, usada pela defesa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) para garantir foro privilegiado no caso Queiroz. A questão deve ser debatida pela Segunda Turma da Corte em um recurso apresentado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), ainda sem data para ser julgado. A ministra, no entanto, é da Primeira Turma, e não deve participar.
Os “mandatos cruzados” dizem respeito, por exemplo, à situação de políticos que trocaram de cargos, como a petista Gleisi Hoffmann (PR) e o tucano Aécio Neves (MG), que deixaram a cadeira de senador para assumir uma vaga de deputado na Câmara. No caso de Flávio Bolsonaro, o filho do presidente da República emendou um mandato de deputado estadual com um de senador.
Em decisão assinada no mês passado, mas tornada pública na última terça-feira, Rosa Weber determinou a abertura de inquérito para apurar indícios de utilização irregular da cota para exercício de atividade parlamentar por parte de dez congressistas, entre eles a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e o senador Romário de Souza Faria (Podemos-RJ). Segundo a PGR, os parlamentares integram um “forte esquema de falsidade ideológica, associação criminosa e lavagem de dinheiro”.
Um dos principais pontos da decisão diz respeito à situação específica do senador Márcio Miguel Bittar (MDB-AC), cuja investigação não ficará no Supremo. Rosa encaminhou a apuração de Bittar para a primeira instância, já que os fatos investigados dizem respeito ao período em que Bittar ocupava não o atual cargo, mas o anterior – de deputado federal. Tanto deputados federais quanto senadores possuem foro privilegiado perante o STF, mas mesmo assim Rosa decidiu que o caso não era de competência do tribunal por não se encaixar nas atuais regras do foro privilegiado.
Em 2018, o Supremo reduziu o alcance da prerrogativa para os crimes cometidos no exercício do mandato e em função do cargo, o que levou dezenas de processos a deixarem o tribunal e serem encaminhados a instâncias inferiores. Como Bittar não é mais deputado federal, a ministra determinou o envio do caso para a Justiça Federal do DF, ainda que ele ocupe agora um cargo de ainda maior importância – e que também possui prerrogativa de foro perante o Supremo.
“Mantenho-me fiel à compreensão de que a assunção de cargo distinto daquele que justificaria o foro por prerrogativa de função implica cessação da competência deste Tribunal para o processamento do feito”, observou Rosa. “Denoto que os fatos em apuração foram supostamente cometidos durante o exercício do mandato de deputado federal, havendo, assim, solução de continuidade incompatível com a manutenção de seu processamento nesta Suprema Corte. O encerramento do mandato, neste caso, justifica a cessação da competência deste Tribunal para o processamento do feito”, escreveu a ministra em sua decisão.
Rosa pontuou ainda que a Primeira Turma já foi chamada a decidir sobre o tema, “tendo ratificado a compreensão de que o foro por prerrogativa de função no Supremo Tribunal Federal não se perpetua nas hipóteses em que os fatos criminosos imputados estejam relacionados com um determinado cargo e o imputado posteriormente passa a ocupar cargo diverso”.
‘Rachadinha’
No caso de Flávio Bolsonaro, os fatos apurados envolvendo o filho do presidente da República não se enquadram na nova regra do foro privilegiado, porque os episódios sob investigação dizem respeito a suspeitas envolvendo não o atual cargo, mas, sim, a seu gabinete na época em que ele era deputado estadual. Assim como Bittar, ele foi “promovido” a um cargo de maior envergadura.
Os desembargadores fluminenses deram ao senador o direito de ser julgado pelo Órgão Especial do TJ, onde os deputados estaduais do Rio têm foro. Isso porque Flávio Bolsonaro exercia essa função durante o período em que teria cometidos os crimes apontados pelo MP ao longo do inquérito das “rachadinhas” (recolhimento de parte do salário de assessores para devolvê-los ao político responsável pelo gabinete).
Para a PGR, comandada por Augusto Aras – indicado por Bolsonaro ao cargo, sem o aval dos colegas -, a questão ainda não está pacificada no tribunal.
De acordo com o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, quando o Supremo delimitou a questão do foro privilegiado “ficaram a descoberto diversas situações fáticas não pensadas e não contempladas no caso então em exame”, entre elas a de parlamentares eleitos de maneira ininterrupta e para casas legislativas diversas. Flávio Bolsonaro emendou o mandato de deputado estadual (com foro no Tribunal de Justiça) com o de senador (foro no STF).
“Da mesma forma que não há definição pacífica do Supremo Tribunal Federal sobre “mandatos cruzados” no nível federal, também não há definição de “mandatos cruzados” quando o eleito deixa de ser representante do povo na casa legislativa estadual e passa a ser representante do Estado da Federação no Senado Federal (câmara representativa dos Estados federados)”, alegou Jacques, ao enviar um parecer em que pede a rejeição de uma ação que contesta o foro de Flávio no caso Queiroz.
Para a AGU, situações como as de reeleição para mandatos sucessivos não foram objeto de solução explícita pelo plenário do STF.
Por Rafael Moraes Moura e Pepita Ortega
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