Sem passar pelas etapas necessárias, o Ministério da Saúde mudou nesta quarta-feira a orientação sobre o uso da cloroquina, estendendo a possibilidade de médicos prescreverem a substância a todos os pacientes com covid-19. Em vez de um protocolo, como vinha defendendo o presidente Jair Bolsonaro, a pasta divulgou apenas um documento, sem assinatura e fora dos padrões, em que recomenda a administração da droga desde os primeiros sinais da doença. Na prática, Bolsonaro perdeu dois ministros que se recusaram a assinar a medida e, mesmo assim, continuou sem conseguir exigir de Estados, municípios e da rede privada mudanças no atendimento.
O documento divulgado ontem, porém, foi a alternativa encontrada pelo ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, diante das dificuldades de se criar um protocolo propriamente dito – este sim com poder de ditar regras de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Para isso, seria necessária a aprovação de um Protocolo Clínico de Diretriz Terapêutica (PCDT), medida que passa por um rito próprio e muitas vezes lento no governo.
Um dos pilares para elaborar o protocolo é a comprovação científica da eficácia da droga – o que não existe. O órgão responsável por avaliar se um produto será usado na rede pública é a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), colegiado formado por representantes da indústria e diversos setores.
“O protocolo precisa ser algo cartorial, com obrigação de ‘cumpra-se’. O que estamos fazendo é orientação, a partir da liberação do Conselho Federal de Medicina (CFM) de que médicos brasileiros possam ter livre-arbítrio. Queremos garantir que o tratamento de tantos brasileiros não seja retardado”, afirmou ontem a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação, Mayra Pinheiro.
Para gestores do SUS, ao divulgar apenas uma orientação de uso do produto, o ministério contornou a dificuldade de criar um protocolo do SUS sobre um medicamento sem benefício comprovado contra a covid-19 – e ainda agradou ao presidente e à sua militância.
O uso em larga escala da cloroquina para combater o coronavírus se tornou uma das principais bandeiras de Bolsonaro durante a pandemia, mesmo sem respaldo da comunidade científica sobre a eficácia (mais informações nesta página). Nas redes sociais, aliados do governo destacaram a “coragem” de Bolsonaro em “liberar” a droga.
Médicos já vinham receitando a cloroquina nas redes privada e pública de forma “off label”, ou seja, fora das recomendações da bula. Para dar respaldo a esta situação, mas sem seguir recomendações científicas, o CFM decidiu, no fim de abril, livrar de infração ética o profissional que prescrever a cloroquina contra a covid-19.
O médico sanitarista Gonzalo Vecina, colunista do Estadão e fundador da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), afirmou que a nova orientação é apenas política. “O ministério fez para deixar o presidente (Bolsonaro) satisfeito. Vai ser uma arma de pressão aos fracos, para quem não acredita na ciência”, disse. “É uma questão de fé. Quando não tem o que fazer, as pessoas querem qualquer coisa. Esse negócio, além de não fazer bem, pode fazer mal”, completou Vecina.
Para o advogado sanitarista Tiago Farina Matos, a orientação do ministério é “frágil”, pois não passou pelo rito correto. “Não seguindo este caminho, você tem uma deliberação com vício de origem e falta de credibilidade. O fluxo de análise na Conitec poderia ser acelerado, mas não há justificativa para não usar este processo”, disse.
Especialistas e gestores do SUS ouvidos pela reportagem temem que pacientes passem a exigir a prescrição após a orientação da pasta. Secretários estaduais alertam para a possibilidade de o presidente usar a droga como justificativa para reduzir o distanciamento social.
O secretário de Saúde do Maranhão, Carlos Lula, disse que o documento divulgado nesta quarta-feira pela pasta não muda a rotina no Estado. “O PCDT seria mais forte. A gente passa a ter consequência, inclusive, civil. Pode haver obrigação de se adequar”, disse.
OMS
Na quarta-feira, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou que a cloroquina e a hidroxicloroquina sejam usadas apenas em estudos clínicos contra o coronavírus, dentro de hospitais, ressaltou que não há eficácia comprovada desses medicamentos no combate à covid-19 e alertou para os efeitos colaterais.
Segundo a Sociedade Brasileira de Imunologia (SBIm), a escolha da terapia com cloroquina ou hidroxicloroquina vem na contramão da experiência mundial e científica. “Este posicionamento não apenas carece de evidência científica, além de ser perigoso”, informou em comunicado assinado por 22 especialistas. Pesquisas já publicadas em importantes revistas médicas, como New England Journal of Medicine e o Journal of the American Medical Association, indicam resultados nada promissores. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Por Mateus Vargas
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