Mais da metade dos Estados aderiu ao uso de ferramentas de geolocalização criadas pelas operadoras de telefonia ou por startups de tecnologia para enfrentar a pandemia do novo coronavírus. As empresas garantem que, da forma como vêm sendo usadas, as ferramentas não oferecem risco à privacidade. Mas a falta de mecanismos para regulamentar e fiscalizar o uso de dados pessoais cria insegurança jurídica tanto para os usuários de celulares, que não querem seus dados expostos, quanto para gestores, que pretendem dar mais efetividade à aplicação da tecnologia, segundo especialistas.
A ferramenta desenvolvida pela startup pernambucana In Loco foi adotada por 14 das 27 unidades federativas. O Estado de São Paulo usa também a plataforma oferecida pelas quatro operadoras de telefonia – Vivo, Claro, Oi e Tim. As empresas se comprometeram a disponibilizar, a partir de amanhã, a tecnologia para a União, Estados e cidades com mais de 500 mil habitantes. O serviço já tinha sido oferecido ao governo federal, mas a negociação foi abortada por ordem do presidente Jair Bolsonaro.
Com a nomeação de Nelson Teich para o Ministério da Saúde, existe a expectativa de retomada das tratativas. Ele já defendeu o uso da geolocalização em artigos. Neste sábado, 18, o governo, por meio de Medida Provisória, determinou que as operadoras entreguem ao IBGE os nomes, números de celular e endereço de mais de 200 milhões de clientes.
No entanto, segundo especialistas, a decisão de postergar a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), aprovada em 2018, e a demora para indicar os nomes da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), sancionada em julho do ano passado, mas até hoje parada, podem ser entraves (mais informações nesta página).
Em países que tiveram bons resultados no combate à pandemia até agora, como a Coreia do Sul, o uso da geolocalização foi fundamental. Os coreanos utilizaram, entre outras ações, um sistema conhecido como contact tracing (rastreamento de contato), que permite identificar os contaminados pela covid-19, rastrear os locais por onde eles passaram e as pessoas com quem tiveram contato e fazer o isolamento seletivo destes indivíduos sem a necessidade de medidas mais drásticas.
Outros países na Europa e na Ásia adotaram sistemas semelhantes com bons resultados, mas isso gerou um debate sobre qual é o ponto de equilíbrio entre o direito à privacidade e a necessidade do uso de dados pessoais no combate à pandemia.
Funcionamento
No Brasil, o uso da geolocalização ainda é primário. As operadoras de telefonia e a In Loco fornecem aos governos estaduais, mediante termos de cooperação, um painel no qual é possível ver o fluxo de pessoas do dia anterior. Os dados são anônimos e mostrados em bloco – e não individualmente. Com eles, é possível dizer se houve grande concentração de pessoas em um local, mas não se pode identificar quem esteve lá, segundo os responsáveis.
A partir disso, cada governo usa as informações da forma que achar conveniente. No Piauí, primeiro Estado a usar a tecnologia da In Loco, a PM já fez ao menos 19 operações contra aglomerações usando a geolocalização. “A maioria dos casos era de comércios que abriram as portas”, disse o comandante do Centro de Operações da PM do Piauí, major Gustavo Campelo. Em todos os casos, os envolvidos foram identificados. Desde semana passada, a PM pode aplicar multas de até R$ 5 mil para pessoas físicas e R$ 17 mil para pessoas jurídicas que descumprem as normas da quarentena.
Em São Paulo, o Sistema de Monitoramento Inteligente (SMI) cruza as informações dos telefones com bancos de dados do Estado e usa o resultado para orientar ações. Um exemplo são as mensagens via SMS enviadas a moradores de regiões onde há alto índice de contaminações. “Estamos aplicando tecnologia e transparência para viabilizar um modelo de quarentena parcial, sempre respeitando a privacidade do indivíduo. Países que conseguiram taxas de isolamento como a nossa tiveram que recorrer a modelos diferentes do nosso como o confinamento total (lockdown) e/ou uso de dados do indivíduo para monitoramento em tempo real”, disse a secretária de Desenvolvimento Econômico, Patrícia Ellen da Silva.
Segundo Patrícia, os termos de cooperação com a In Loco e operadoras respeitam os dispositivos da LGPD, embora a norma ainda não esteja em vigor. E o governo paulista não tem intenção de aplicar tecnologias invasivas, como o rastreamento de contato da Coreia.
‘Não dá para falar que um dado é 100% anônimo’
Apesar de todas as medidas de proteção à privacidade adotadas pelos Estados, especialistas dizem que não há garantia total. Em relatório no qual aborda o uso da tecnologia no combate à pandemia sob o aspecto legal, a Data Privacy Brasil usa a expressão “(pseudo) anonimização”. “É para mostrar o quão complexo é falar em anonimização de dados pessoais. Não dá para falar que um dado é 100% útil ou 100% anônimo”, disse o advogado Bruno Bioni, diretor da instituição.
A legislação atual, segundo ele, possui mecanismos para assegurar a privacidade, mas não tão eficazes quanto a LGPD e a implementação da Autoridade Nacional. “A LGPD é uma lei vocacionada para isso. Sem ela há uma insegurança jurídica porque a legislação existente é esparsa, uma colcha de retalhos.”
Aprovada pelo Congresso em 2018 na esteira do escândalo da Cambridge Analytica, empresa investigada por vender dados pessoais de eleitores à campanha de Donald Trump, em 2016, a LGPD deveria entrar em vigor em agosto, mas foi adiada para janeiro de 2021 por pressão de empresas do setor e contra manifestação do Ministério Público Federal.
Já a ANPD foi sancionada por Bolsonaro em julho do ano passado, mas o presidente nunca indicou seus membros. Segundo fontes em Brasília, o motivo é a divergência com o Congresso em relação aos nomes.
Para o advogado Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, os interessados em usar a geolocalização no combate ao coronavírus deveriam colocar entre as prioridades a vigência da LGPD e a nomeação da ANPD. “Todo mundo deveria estar buscando agora a indicação e a construção dos protocolos nacionais que devem ser respeitados para a confecção destes convênios”, disse Brito.
Segundo o presidente da In Loco, André Ferraz, a falta de legislação específica impede o Brasil de usar tecnologias como o rastreamento de contato. Procurado, o governo federal não respondeu sobre a LGPD e a nomeação na ANPD. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Por Ricardo Galhardo
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