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Como o coronavírus se alastrou em Boa Vista

Na rua onde mora a venezuelana Doris Malavel, de 47 anos, quase todos ficaram doentes ao mesmo tempo. Ela e os vizinhos perderam a sensibilidade do olfato, já não sentiam mais o gosto da comida e tinham dores no corpo. Na mesma semana, cerca de 30 pessoas tiveram os sintomas, ela conta, apenas entre os moradores mais próximos da sua casa, na zona rural de Boa Vista, em Roraima.

“De uma vez, caímos todos doentes, mas não sabíamos que era coronavírus, achávamos que era outra coisa, e só depois ficamos sabendo que (a perda do olfato) é um dos sintomas”, ela conta.

Na capital mais isolada do País, o vírus se espalhou rapidamente. Roraima é o Estado menos populoso do Brasil, mas tem hoje a maior proporção de infectados pelo coronavírus – são mais de 8 mil a cada 100 mil habitantes, segundo o Ministério da Saúde. A taxa de mortalidade é também uma das mais altas do País, acima de 100 a cada 100 mil, atrás apenas do Rio de Janeiro e do Distrito Federal. O surto na rua de Doris, em junho, coincidiu com o período em que mais pessoas morreram por causa da covid-19 na cidade.

Para chegar a um patamar tão alto de infecção, os roraimenses viram autoridades incentivarem o desrespeito a medidas de isolamento, ficaram próximos ao colapso do sistema de saúde, e tiveram quatro atrasos sucessivos no início da operação de um hospital de campanha – que agora está subutilizado. Hoje, o controle sanitário na cidade é discreto: o uso da máscara em locais públicos ainda é obrigatório, mas a fiscalização é rara, o que faz com que parte expressiva da população circule desprotegida. A não ser no caso de escolas e shows, que continuam suspensos, a vida lembra muito o período pré-pandemia.

Faxineira e sem emprego fixo, Doris tem ido ao centro de Boa Vista semanalmente em busca de trabalho. Durante os meses mais duros da crise sanitária, sua família também se isolava pouco – seu filho mais velho, de 23 anos, é ajudante de pedreiro e o único que pode pagar o aluguel de R$ 300 da casa onde mora com a mãe, a mulher e um filho. “É muito difícil uma pessoa ficar dentro de casa quando tem uma criança para alimentar.”

Os números de mortos e infectados caíram a partir de julho e agosto. A prefeitura e especialistas trabalham com a hipótese de que Boa Vista tenha se aproximado da imunidade de rebanho (ou coletiva), quando a transmissão do vírus diminui por causa da quantidade de pessoas que já têm anticorpos em seu sistema imunológico. Um estudo divulgado na semana passada sugere que o fenômeno pode ter ocorrido em Manaus, única capital à qual Boa Vista está ligada por meio de uma rodovia.

Maior prevalência

Pesquisa da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) apontou que um a cada quatro moradores haviam testado positivo em exames sorológicos no início de junho. Era a maior prevalência do novo coronavírus entre as 133 cidades pesquisadas no estudo. “Não me parece provável, mas é possível que Boa Vista tenha chegado à imunidade de rebanho”, diz o reitor da UFPel e coordenador da pesquisa, Pedro Hallal. Ele ressalta que a quantidade de anticorpos detectáveis no organismo diminui no período de 40 a 50 dias, mesmo que a imunidade à doença perdure. “Essa é uma característica do novo coronavírus.”

Os dados de Roraima chamaram atenção no estudo pelos altos índices de prevalência, ele conta. Sobre a imunidade de rebanho, Hallal diz que não é possível ser “contra ou a favor” de um conceito epidemiológico, mas assegura que ele não deveria ser usada como meta. “O coronavírus mata bastante, então não podemos ter a imunidade de rebanho como uma estratégia de saúde pública”, diz Hallal. “Só é uma estratégia se atingimos por vacinação ou se a doença não tem gravidade nenhuma.”

No governo estadual, a exposição à covid-19 não enfrentou resistência. No fim de março, o governador Antônio Denarium (sem partido), alinhado ao presidente Jair Bolsonaro, chegou a editar um decreto que flexibilizava a abertura do comércio e apoiou uma carreata de empresários que pedia a reabertura de lojas. O movimento foi interpretado como confronto com a prefeita da capital, Teresa Surita (MDB), que defendeu o distanciamento social ao longo da crise.

“Eles não fizeram nenhum esforço, se omitiram”, disse Teresa ao Estadão. “Ao apoiar uma carreata e falar da questão da economia, eles deixavam subentendido que o isolamento não era necessário. Só que ele (Denarium) não tinha coragem de fazer de uma forma muito aberta, porque as pessoas não apoiavam essas atitudes.”

A estabilização no número de mortes em Roraima coincidiu com a inauguração da Área de Proteção e Cuidados (APC), hospital de campanha administrado pelo Exército, no fim de junho. Hoje, o Estado tem menos de um óbito por dia, em média. O início das atividades foi postergado por cerca de três meses, enquanto o governo estadual descumpriu a promessa de fornecer remédios, insumos e profissionais.

A responsabilidade foi assumida por hospitais particulares e pela prefeitura, que diz gastar R$ 1,3 milhão por mês para bancar a folha de pagamentos da equipe. Atualmente, o hospital opera com menos da metade de sua capacidade. O Estadão entrou em contato com o governo estadual, que não respondeu os questionamentos.

Antes mesmo da queda nas taxas de transmissão da doença, moradores dizem que já era comum ver militares sem máscara nas ruas de Boa Vista – o que hoje já é disseminado em bares e restaurantes. São mais de 600 militares apenas na Operação Acolhida, que atende os imigrantes venezuelanos. Uma mensagem gravada em abril pelo então comandante da operação, general Antônio Manoel de Barros, chegou a ser interpretada como um incentivo à exposição.

“Não estamos infectados, nós estamos sendo imunizados para ações futuras, essa é a visão que nós temos de ter”, disse o general no vídeo. Ele também destacou que os infectados teriam tratamento garantido. O Estadão procurou a Operação Acolhida, mas não obteve resposta. O Exército tem ressaltado que adotou medidas rigorosas para impedir a transmissão do coronavírus nos abrigos da operação.

Venezuelanos

A maioria dos venezuelanos ouvidos pela reportagem relata que os casos suspeitos são encaminhados com rapidez aos hospitais de referência. Isso não impediu, no entanto, que alguns tenham passado despercebidos pelas autoridades nos centros de acolhida. “Tive (covid-19), mas meu corpo foi mais forte do que a enfermidade”, conta o venezuelano Jesus Davi, de 26 anos.

Ele diz que adoeceu dentro do abrigo armado no estacionamento da Rodoviária Internacional de Boa Vista, que integra a operação do Exército, e que não recebeu atendimento nem foi isolado. Por acreditar que o calor combate o vírus, Davi ficou debaixo do sol. Segundo ele, os conterrâneos que vivem ao seu lado no abrigo não tiveram sintomas, mas também não foram testados. “Estava um pouco cansado, exausto, tinha febre e dor de cabeça. Então fiquei na rua.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Por Túlio Kruse, enviado especial

Estadão Conteúdo

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