A pandemia do novo coronavírus afetou processos democráticos por todo o mundo. A emergência sanitária desafiou governos a adaptarem seus processos eleitorais e participativos a uma realidade que restringe liberdades em prol da saúde e coloca em xeque os formatos já consagrados.
Para manter o funcionamento das instituições, governos recorreram à tecnologia, com a realização de sessões legislativas e judiciais virtuais e negociações internacionais por teleconferência. No entanto, quando os processos presenciais não puderam ser substituídos, outras medidas tiveram que ser pensadas.
É o caso dos países que tinham eleições marcadas para 2020. No Brasil, a solução foi postergar o pleito. Na Rússia, o plebiscito para a contestada reforma constitucional de Vladimir Putin foi realizado ao longo de dez dias.
“A democracia não é só eleição, mas o processo eleitoral é muito importante, porque é um ponto de partida para o cidadão escolher quem vai governar em seu nome. A questão no momento é que, ao mesmo tempo que você tem que manter o processo, tem a questão da preservação da vida, pois não controlamos a dinâmica da pandemia”, explica o professor José Álvaro Moisés, da Universidade de São Paulo (USP).
O manuseio desses dois fatores fica claro no processo eleitoral dos Estados Unidos. A campanha presidencial não foi interrompida, para manter a igualdade de condições na disputa, mas a discussão sobre limitações de público em comícios e mesmo a permissão para voto via correspondência são intensos, dividindo Democratas e Republicanos.
Já em outros países, as soluções foram menos equilibradas. Enquanto no Burundi as eleições ocorreram normalmente em maio, com aglomerações e sem regras de isolamento – e com o governo negando a existência da pandemia -, na República Dominicana foram proibidos atos públicos de campanha, como comícios.
Para o cientista político Rodrigo Prando, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, as diferentes reações à pandemia demonstram um pouco da qualidade da democracia dos países. “O coronavírus é um elemento conjuntural que afetou o mundo todo. Com esse impacto, ficaram explícitas as características estruturais de cada país”, explica o professor.
Participação popular
Outro fator impactado diretamente pela pandemia foi a participação popular. A manifestação física, presencial, ficou relegada ao esquecimento no começo da pandemia, tanto pelo isolamento social, quanto pela realização de grande parte do processo político por meios virtuais.
No entanto, mesmo com a ameaça do contágios, manifestações populares eclodiram por todos os continentes. O maior exemplo são as manifestações convocadas pelo grupo “Black Lives Matter” após o assassinato do americano George Floyd pela polícia, que reuniu milhões de pessoas. No Brasil, protestos contra e a favor do presidente da República também ganharam as ruas.
Moisés acredita que a pandemia criou um paradoxo do ponto de vista da participação política. “Se por um lado criou um medo das aglomerações, ela também suscitou uma consciência que diante de situações graves, a intervenção do poder público é fundamental”, explica o professor.
Segundo ele, a contestação do cenário político e o sentimento de urgência na solução de temas anteriores à pandemia, como o racismo, ganharam fôlego mesmo na crise. No mesmo sentido, Prando observa que a necessidade cobrar o governo por medidas eficazes de contenção a pandemia acabou pressionando por essa politização. Os efeitos a longo prazo, no entanto, ainda são incertos.
“Será que depois da pandemia os eleitores do mundo não vão começar a se questionar a respeito da qualidade da representação? Esse cara, que foi eleito com a legitimidade do voto, está correspondendo?”, questiona.
Cenário pós-covid
Se por um lado estão claras as adaptações e mudanças provocadas por influência da pandemia, precisar quais delas serão mantidas e quais serão abandonadas no mundo pós-covid ainda é uma incógnita.
Fazendo projeções, os cientistas políticos apontam que a apropriação dos meios tecnológicos pelos processos políticos é algo irreversível. “A pressão que está havendo para que se utilize os meios digitais nos processos democráticos é uma realidade e vai se ampliar cada vez mais. Abriu uma avenida que acho que não tem mais volta”, diz Moisés.
Prando concorda que o uso de processos virtuais pelo Estado deve se tornar cada vez mais comum. No entanto, o professor pondera que a velocidade desse avanço depende da viabilidade técnica. “Embora a gente possa fazer transferência bancária, pesquisa, conferência e trabalhar à distância, a gente ainda não consegue fazer eleição e democracia plena à distância, sem presença física.”
Independentemente do ritmo da digitalização dos processos, contudo, o professor lembra que alguns elementos eleitorais, como o contato pessoal, não encontraram substitutivos. “Como fazer política sem a presença física é outro ponto. Como fazer campanha sem o toque, o abraço, a emoção? Lidar com essa situação política sem a presença física e o afeto é algo que pode ser que observemos nas eleições municipais”, diz Prando.
No pós-pandemia, porém, Moisés não crê que a digitalização roube o espaço do “olho no olho”. A expectativa é por uma integração cada vez maior entre os mundos físico e digital.
“Quando a pandemia passar, acho que vamos ver uma reocupação das ruas. Esse é um outro paradoxo: vai haver uma combinação entre os meios virtuais e as ruas. Não é para a gente pensar que o impulso que novas tecnologias dão aos ambientes virtuais vão desmobilizar manifestações que ocupam as ruas e os espaços públicos”.
Por Renato Vasconcelos
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