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Fernández dá nova cara à diplomacia argentina

Em menos de 100 dias de governo, o presidente Alberto Fernández já deu muitos sinais de ter começado uma nova etapa na política externa da Argentina, com mudanças não apenas em relação ao antecessor, Mauricio Macri, mas também ao último governo de Cristina Kirchner, sua aliada e vice-presidente.

Os últimos quatro anos de kirchnerismo (2011-2015) foram marcados pelo apoio ao regime chavista venezuelano, a Rafael Correa, no Equador, e ao Partido dos Trabalhadores (PT), no Brasil. Cristina se distanciou dos EUA, tentou fechar acordos com Rússia, Irã e se aproximar da China. Durante esse período, Fernández criticava a política externa argentina e defendia a volta da direção dada por Néstor Kirchner, de quem foi chefe de gabinete.

A diplomacia pós-Cristina não demorou muito a se desenhar. Fernández escolheu o México como o primeiro destino – quebrando a tradição do Brasil como primeira visita oficial. A segunda viagem, porém, foi a Israel, incluindo uma reunião com o premiê Binyamin Netanyahu, um duro crítico da relação de Cristina com o Irã.

No governo, Fernández lidera uma coalizão de kirchneristas, peronistas conservadores e progressistas não peronistas. Sua chegada à Casa Rosada, porém, teve mais a ver com o apoio de Cristina do que com a aliança entre esses diferentes grupos. No poder, o presidente trabalha para consolidar seu próprio estilo, navegando entre a ruptura com a diplomacia de Macri e tornando o mais evidente possível que ele não é Cristina.

Pragmatismo
A prioridade do governo de Fernández é renegociar a dívida com o FMI e com os detentores de títulos privados. Toda a estratégia econômica e diplomática é colocada a serviço dessa missão e está diretamente ligada com o esforço de passar uma imagem de uma nova era pós-Cristina.

“As duas grandes diferenças entre a política externa de Fernández e Cristina: a tomada de decisões, que antes era homogênea e tinha um perfil ideológico muito claro, agora ganhou uma visão mais pragmática e heterogênea”, disse ao Estado Esteban Actis, professor da Universidade Nacional de Rosario. “Outra diferença é o contexto, em razão da economia atual, mais fragilizada, e do cenário global muito mais convulsionado.”

A Venezuela é um dos temas mais quentes da região e um assunto no qual Fernández rompe com ambos, Macri e Cristina. Segundo Actis, a diferença principal é que agora o governo argentino vem condenando sistematicamente as violações de direitos humanos e o autoritarismo de Nicolás Maduro. “A Argentina vem tentando se descolar das posições mais radicais da esquerda latino-americana e adotar uma política que agrade às duas alas do governo. Fernández ocupa o espaço deixado pela Frente Ampla, do Uruguai (que acaba de perder as eleições)”, afirma.

Para Actis, a relação com os EUA também é “totalmente diferente” agora, porque o presidente sabe que, sem a ajuda americana, será muito difícil obter um alívio da dívida. “Como maneira de resolver conflitos, Cristina aprofundava as contradições, dividia lados entre amigos e inimigos”, afirma Actis. “Fernández constrói pontes que podem se chocar com a truculência do discurso de Cristina.”

Dívida
Um exemplo foram as recentes negociações da dívida. No auge da tensão, Cristina exigiu publicamente que o FMI cancelasse a dívida argentina – e recebeu como resposta que não seria possível, em razão dos estatutos da instituição.

Fernández tem bons relacionamentos em Washington desde que era chefe de gabinete de Néstor. Quando decidiu viajar para Israel, segundo Acris, enviou uma mensagem a Donald Trump: a política externa argentina tem uma nova marca.

O novo chanceler, Felipe Solá, que se reuniu recentemente com o presidente Jair Bolsonaro, não respondeu aos pedidos de entrevista. Mas, no Palácio San Martín, sede da chancelaria argentina, existe um excesso de precaução para evitar ruídos que dificultem as negociações sobre a dívida.

Fontes próximas de Solá, no entanto, admitiram à reportagem que a nova política externa quer derrubar o mito do peronismo como “movimento antieuropeu e antiamericano” e passar a segurança de que a Argentina agora apoia “uma visão mais crítica sobre a Venezuela”.

Nos bastidores, os diplomatas argentinos confirmam que a prioridade do governo argentino é a reestruturação da dívida e garantem que Fernández quer que o país retorne à sua posição tradicional de não interferência em assuntos internos de outros países.

De acordo com fontes do governo, a nova diplomacia argentina encontrou no papa Francisco um parceiro tático. A terceira viagem oficial de Fernández foi para o Vaticano. Jorge Bergoglio é próximo do peronismo e tido como uma “referência ética e moral”.

Durante anos, Francisco teve em Cristina uma fiel aliada para bloquear a legalização do aborto. Agora, isso também mudou, já que Fernández já anunciou que apoiará a elaboração de uma lei que regularize a interrupção da gravidez na Argentina.

No Brasil, nos EUA e na China, Argentina manda mensagem de mudança

Alberto Fernández ainda está montando sua equipe de governo e indicando embaixadores. Mas três casos são um exemplo da nova diplomacia pós-Cristina Kirchner: os escolhidos do presidente para ocupar os postos em Brasília, Washington e Pequim.

No caso do Brasil, Fernández decidiu enviar o ex-vice-presidente e ex-governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, desafeto de Cristina por muitos anos e escanteado dentro do kirchnerismo. Embora não venha da carreira diplomática, ele tem experiência política, não tem vocação ideológica e está perto do poder.

Para os EUA, a Casa Rosada inovou com a indicação de um “superembaixador”. Além do posto na embaixada, Jorge Argüello será uma espécie de coordenador de todas as delegações argentinas: OEA, FMI, Banco Mundial e BID. Argüello foi embaixador na ONU, é amigo pessoal de Fernandez e tem um perfil diferente de Héctor Timerman, escolhido por Cristina na época por sua retórica ideológica e de confronto.

O cargo em Pequim foi definido após uma disputa entre as duas alas do kirchnerismo. Os radicais apostavam em Sabino Vaca Narvaja, que perdeu a queda de braço para um diplomata de carreira, Luis Kreckler, ex-embaixador no Brasil, de perfil mais profissional e um aceno aos funcionários do Palácio de San Martín.

Ao Estado, diplomatas do alto escalão do governo, que pediram anonimato em razão da delicada renegociação da dívida, disseram que a necessidade de manter um boa relação com as grandes potências aproximam a política externa do ex-presidente Mauricio Macri com a de Fernández. “O governo precisará de simpatia e paciência”, diz um diplomata que ocupou alto posto no governo anterior.

A relação entre funcionários dos dois governos – Macri e Fernández – é melhor do que se imaginava. Fontes da Casa Rosada disseram ao Estado que Fernández chegou a perguntar à ex-chanceler Susana Malcorra como responder os desaforos de Bolsonaro.

“O conselho que ele recebeu foi o que ele acabou fazendo: baixar o tom e não responder”, disse um diplomata ligado ao presidente.

Segundo José Perego, do centro de estudos latino-americanos do Conselho Argentino de Relações Internacionais (Cari), as dificuldades econômicas devem conter a agressividade na relação entre os dois países. “Existe uma linha coerente de pragmatismo de Argentina e Brasil. A circunstância econômica obriga o governo argentino a buscar consenso, e não conflito”, disse. “A agenda negativa, sem nenhum tipo de ganho, não faz sentido prático.”

Ainda de acordo com Perego, Fernández também não deve se descuidar do Mercosul, já que as questões comerciais estão diretamente ligadas à recuperação econômica. “Não há nenhum presidente da Argentina, desde os anos 80, que não tenha apostado no Mercosul, porque uma região sem o bloco é inviável em razão da integração entre as economias.”

Por enquanto, pelo menos publicamente, Fernández vem se esforçando para mostrar uma política externa diferente da de Macri, mas e também da de Cristina. Em gestos e pensamento, o presidente argentino parece seguir à risca o lema de seu ex-chefe, Néstor Kirchner, que costumava repetir sempre que precisava acalmar os empresários: “Não prestem atenção no que digo, mas no que eu faço”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Por Daniel Galvalizi, especial para a AE

Estadão Conteúdo

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