Categories: Política

Claudia e Alessandra, as advogadas da AGU que recitaram Emicida no STF

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) estava esvaziado, como não raro acontece quando a sessão é reservada a sustentações orais, mas os ministros que estavam presentes ouviram relatos contundentes de advogadas e advogados negros no primeira dia do julgamento histórico que pode reconhecer o racismo estrutural e a violação sistemática de direitos da população negra no Brasil.

“A data de hoje, a minha presença hoje nesta tribuna, representa o que dizem os versos que ficaram famosos na música do Emicida: Eu sou o sonho dos meus pais, que era o sonho dos avós, que era o sonho dos meus ancestrais”. A referência ao rapper, voz ativa na luta contra o racismo, abriu o discurso da advogada pública Claudia Aparecida de Souza Trindade.

A paranaense foi a primeira integrante da família a cursar o ensino superior. A mãe, zeladora de escola, era semianalfabeta. O pai, trabalhador informal, só teve cinco anos de estudo. Quando os dois morreram, Claudia tinha 14 anos e, além de precisar lidar com a perda precoce, teve que assumir a criação dos três irmãos menores. Ela começou a trabalhar como operária em uma fábrica em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, para ajudar a sustentar a família.

O ponto de virada na trajetória até a tribuna do STF foi a aprovação no vestibular da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde se formou em fevereiro de 1992. Ela saiu da faculdade direto para a carreira como procuradora da Fazenda Nacional. Hoje, é coordenadora da assessoria especial de diversidade e inclusão da Advocacia-Geral da União (AGU).

“A educação me resgatou e possibilitou que eu trouxesse meus irmãos também para um curso superior e para uma mudança de classe social”, conta ao Estadão. Além da experiência na administração pública, Claudia engatou uma carreira acadêmica, fez mestrado na UFPR e doutorado na Universidade de São Paulo (USP).

Diante dos ministros do STF, no último dia 21, defendeu que o tribunal reconheça o histórico de violações de direitos fundamentais da população negra. Não foi sua primeira vez na tribuna do Supremo, mas, para a advogada, foi a mais marcante.

“Foi, para mim, a atuação mais importante na minha vida. Embora já tenha sustentado inúmeras vezes perante o STF em causas tributárias, muitas vezes envolvendo milhões de reais, nada se compara ao valor simbólico envolvido nas consequências e alcance do resultado desse julgamento para a sociedade brasileira e para o povo negro como um todo”, afirma.

A AGU pleiteia, além do reconhecimento do racismo estrutural, a proposta de um plano de ação com políticas públicas efetivas em favor do povo negro. “É um passo muito importante para a mudança desse estado de coisas que é a maior causa da desigualdade reinante em nosso País”, avalia. “Ainda há um longo caminho a percorrer.”

O ministro-chefe da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias, também estava no plenário, mas abriu mão de fazer a sustentação oral para dar lugar a advogadas negras. A decisão foi tomada como um ato simbólico, sobretudo porque a AGU, no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, foi contra a ação, ou seja, houve uma mudança no posicionamento da União.

As câmeras da TV Justiça captavam Messias sentado ao fundo. De tempos em tempos, enquanto Claudia falava, ele assentia com a cabeça, sorrindo. O gesto se repetiu também durante o discurso da advogada pública Alessandra Lopes da Silva Pereira. Elas dividiram o tempo na tribuna do STF.

Ao Estadão, a brasiliense, que está na AGU desde 2017, e também foi a primeira da família a se formar na universidade, afirma que a decisão de estudar Direito veio da dificuldade de aceitar injustiças. “O Direito foi para mim um instrumento para domar esta inquietude.”

Alessandra define a participação no julgamento sobre o racismo estrutural como uma “realização”. A advogada vê na ação uma oportunidade para o Estado brasileiro saldar uma dívida histórica com a população negra.

“Este julgamento representa uma oportunidade não apenas de reconhecimento do racismo estrutural no Brasil, mas, sobretudo, um caminho que nos aproxime mais da promessa constitucional de que viveremos em uma sociedade livre de preconceitos, objetivo que exige, evidentemente, esforço e cooperação não apenas dos poderes constituídos, como de toda a sociedade brasileira.”

Por Rayssa Motta

Estadão Conteúdo

Recent Posts

Decreto cria Programa Navegue Simples para simplificar outorgas portuárias

O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, editou decreto que cria o Programa…

26 minutos ago

Noruega formaliza nova doação de mais de R$ 270 milhões ao Fundo Amazônia, diz BNDES

O Banco de Desenvolvimento de Econômico e Social (BNDES) e o governo da Noruega formalizaram…

3 horas ago

Preço das passagens aéreas caíram 2,4% de janeiro a maio na comparação anual, mostra Anac

O Ministério de Portos e Aeroportos (MPor) divulgou nesta quarta-feira, 26, que, conforme os dados…

3 horas ago

Nubank compra Hyperplane, empresa de inteligência de dados

O Nubank comprou a Hyperplane, empresa de inteligência de dados sediada no Vale do Silício,…

3 horas ago

Otan nomeia o primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, como seu próximo secretário-geral

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) nomeou o primeiro-ministro da Holanda, Mark Rutte,…

3 horas ago

Banco do Brasil inicia simulações de uso de Drex para funcionários

O Banco do Brasil começou a testar um simulador de operações com o Drex, a…

3 horas ago