De seus 19 dias de vida, cinco já são como desalojado. Desde a madrugada de domingo, quando deixou a casa inundada no colo da mãe, e ao lado dos dois irmãos, Anthonny Cavalcante é uma das 402 pessoas que sem ter para onde ir dependem integralmente da ONG Instituto Verdescola, na Vila Sahy, em São Sebastião. Ali, na parte pobre de uma das praias mais bonitas do litoral norte de São Paulo, estão concentrados o abrigo, as doações a quem perdeu tudo, os atendimentos médicos e psicológicos voluntários e até mesmo um posto provisório do IML – uma sala e um caminhão frigorífico – até a tarde de ontem sem nenhum funcionário do Estado.
O temporal de domingo, dia 19, deixou ao menos 50 mortos, e mais de 40 desaparecidos. Em São Sebastião foram 626 mm de precipitação. Em Bertioga, 682 mm. Os maiores volumes já registrados no Brasil. Um milímetro de chuva equivale a um litro de água por metro quadrado.
Dados da Defesa Civil do Estado de São Paulo dão a dimensão do problema: Ao todo, são 3,5 mil desabrigados ou desalojados no litoral norte – Anthonny, sua mãe Josefa Cristina Cavalcante e seus irmãos Everton, de 9 anos, e Ysmael, de 4 anos, entre eles. Tamanha legião de pessoas sem ter a quem recorrer explica a enorme procura e o movimento no Verdescola.
Desempregada e sem contar com a família, Josefa saiu com a roupa do corpo e os documentos que recolheu em meio à corredeira que se formava em sua casa. Por ora ocupa um dos quartos do segundo andar do instituto ao lado de outras famílias. Não há como pensar no futuro.
“O senhor está me perguntando e eu não tenho mesmo o que dizer, não tenho para onde ir, estou desempregada e meu filho tem 19 dias”, afirma a mãe. “Vi o Lula na televisão, ontem a Marina Silva esteve aqui, acho que vai ter algum cadastro aqui, não sei.”
O que ela sabe é instintivo. A ONG foi o primeiro lugar em que ela pensou em se valer quando se viu sozinha com as três crianças. O instituto é uma referência na cidade por oferecer gratuitamente aulas no contraturno para mais de mil crianças da região com foco no meio ambiente e apoio social. Após a chuva torrencial de domingo, em menos de 24 horas foram montadas enfermarias, farmácia, quartos para os desalojados, banco de doações. O local se transformou no ponto de coordenação das buscas no município.
Em meio a caminhões do Exército, ambulâncias, caminhonetes da Defesa Civil e viaturas da Polícia Militar, toneladas de alimentos estão sendo distribuídos diariamente. Mas por quanto tempo? “Vai depender das doações e da ajuda do Estado”, afirma a fundadora do Verdescola Maria Antonia Civita
Ela explica que uma parceria com a ONG Humus foi fechada para ajudar a coordenar o trabalho. A organização é especializada em situações de resgate e atuou no terremoto da Turquia, onde mais de 40 mil pessoas morreram. “A preocupação agora é também com a segunda onda de doenças que virá”, afirma, se referindo aos casos de contaminação pela água que se segue em situações de catástrofe.
Situações extremas como a do litoral norte, de acordo com o relatório do Painel Intergovernamental sobre o Clima (IPCC), da ONU, devem se tornar cada vez mais comuns. Chuvas cada vez mais fortes e concentradas são esperadas na região Sudeste do Brasil como consequência do aquecimento acima do 1.5ºC em relação ao nível anterior da Revolução Industrial.
A comunidade de Vila Sahy, onde a ONG funciona desde 2008, foi uma das mais atingidas na cidade. Ao lado de onde socorristas e o Corpo de Bombeiros trabalhavam na tarde de ontem, Naira de Jesus Silva, de 41 anos, assistia impassível. Sua casa ficou de pé, a menos de 10 metros de um monte de terra e escombros, no pé do morro. “Aqui não choveu, foi como se abrissem alguma coisa e despejassem sobre a gente”, diz. “Se eu sair daqui vou para onde? Não tem pra onde ir é por isso que estamos aqui.”
Sua vizinha, Tereza Santos Leal, de 61 anos, passou uma noite no Verdescola e voltou para casa. Diz temer que o pouco que tem seja roubado. Medo tem também de novos deslizamentos, mas o que resta é administrar o receio e cuidar do que sobrou. “Não vou dizer que não tenho medo de ficar, mas me disseram que minha casa não está na área de risco”, afirma.
Na tarde de ontem, bombeiros e socorristas repetiam que entre os desaparecidos estão as 21 pessoas que ocupavam uma casa no bairro durante o carnaval. Ainda não há sinal do grupo. Os corpos de um casal, no entanto, foram encontrados por volta das 16h, para desespero dos familiares alojados no instituto. “Encontramos hoje com os bombeiros esse casal, mas ainda há muita gente para ser encontrada aqui”, diz o guarda-vidas José Eduardo de Souza, de 42 anos, morador local e voluntário nas buscas.
No meio da tarde, quando a notícia chegou, funcionários que trabalham com as crianças alojadas na escola aumentaram o volume da televisão, fecharam o acesso ao refeitório onde estavam os familiares do casal identificado e tentaram mantê-las longe de uma dor que ainda não podem entender.
Ali, enquanto a vida procura um jeito de seguir entre as crianças do segundo andar, ela oficialmente chega ao fim do lado de fora do prédio, onde os corpos identificados são levados para o caminhão frigorífico. Desde que foi estacionado ali, cabe aos funcionários do instituto, familiarizados com os moradores locais, fazer o primeiro reconhecimento dos corpos, situação que causa cada vez mais estresse entre todos.
Questionado pelo Estadão, o secretário-executivo da Segurança Pública, Osvaldo Nico Gonçalves, afirmou que a situação será corrigida. “Estou me inteirando agora, mas já liguei para o diretor do IML e ele está tomando uma providência”, disse.
Enquanto isso não aconteceu, os corpos de algumas das vítimas já reconhecidas são liberados para os velórios e enterros, alguns deles em outros Estados, como viu acontecer a Mariana Pires, de 28 anos. Entre primos e cunhados, ela perdeu seis pessoas próximas, um bebê entre eles. Natural do Piauí, ela diz que ainda não conseguiu dormir desde o último domingo. “Passei a noite aqui, mas como vou dormir depois disso?”, afirma.
Se parar para pensar no futuro, Josefa também não dormirá. O alento vem da ajuda. “Passei com uma psicóloga aqui e vou começar a seguir o tratamento”, diz. “Se Deus me deixou com vida é porque vai abrir ainda alguma porta.” Por ora, há apenas uma aberta.
Por Emílio SantAnna, enviado especial
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