Dependente da importação de trigo, o Brasil começa um movimento, adotado no passado no plantio de soja, para se tornar autossuficiente na produção do grão e mudar a má fama da farinha nacional. É no calor e na seca do Cerrado que agricultores pretendem alavancar a lavoura. Eles apostam nas características da região e na tecnologia do preparo de novas sementes.
Hoje, metade das 12 milhões de toneladas de trigo consumidas no País por ano é importada. A Embrapa vê no cultivo do “trigo tropical” a melhor chance de dobrar as 6 milhões de toneladas que hoje são produzidas em 2,2 milhões de hectares em diversas áreas do País e economizar R$ 400 milhões com a redução nas importações.
O potencial do Cerrado é promissor na quantidade e na qualidade da matéria-prima do pãozinho do dia a dia. Na colheita deste mês, em Goiás, surgiram registros de produtividade três vezes superior à média nacional, de 45 sacas por hectare. O trigo da região é considerado de alta qualidade, o tipo usado na panificação.
O governo planeja, a partir de 2021, ampliar em 50% os cerca de 200 mil hectares de trigo plantados no Cerrado. A meta é alcançar 1 milhão, até 2025, em regiões de Goiás, Distrito Federal, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, o que pode reduzir custos de derivados.
“Temos de ter política de financiamento para a safra. Temos um plano, estamos discutindo com o Ministério da Agricultura, que é aumentar em mais 100 mil hectares a produção no Cerrado no ano que vem. Isso reduziria a importação de trigo e o Brasil economizaria aproximadamente R$ 400 milhões”, diz Celso Luiz Moretti, presidente da Embrapa.
A expectativa para as novas safras é empurrada pelos resultados considerados surpreendentes, em 2019 e 2020 – inclusive com um inédito cultivo no Ceará a partir de variedades desenvolvidas para o Cerrado.
O segredo do sucesso do “trigo tropical” está no avanço das técnicas de manejo da cultura e na tecnologia da Embrapa, que permite gerar sementes adaptadas ao clima. A empresa intensificou o desenvolvimento de variedades a partir dos anos 1980. Com o avanço dos melhoramentos, surgiram espécies mais tolerantes à seca, ao calor e a doenças.
Cruzamentos. O aprimoramento consiste em complexos cruzamentos genéticos entre espécies variadas. As sementes identificadas como BRS 254, BRS 264 e BRS 404, lançadas em 2005 e 2014, são as mais populares na região. A 404, por exemplo, tem a melhor resistência à brusone, doença comum nos campos do Centro-Oeste. Uma vez alcançados, nos laboratórios da Embrapa, os requisitos para a adaptação, a geografia do Cerrado trata de oferecer o restante.
A ausência de chuvas nas épocas de colheita, o período de seca bem definido e o forte calor dos dias, em contraste com as temperaturas amenas da noite, encurtam o intervalo entre plantar e colher.
Enquanto isso, no Sul do País, chuvas podem coincidir com colheitas, algo danoso para a qualidade dos grãos e para a produtividade. Rio Grande do Sul e Paraná, hoje, concentram cerca de 90% da produção nacional de trigo. O processo de tropicalização do trigo é costumeiramente associado ao de expansão das lavouras de soja, que também começaram pelos climas temperados do Sul e, aos poucos, foram interiorizadas.
Com os planos e incentivos para expansão das lavouras de trigo, o Brasil ficará menos dependente do produto que compra da Argentina. O país vizinho é responsável por cerca de 82% dos grãos importados pelos moinhos brasileiros. Como os compradores impõem critérios de qualidade aos vendedores, o produto que chega ao País é o mais nobre, com o qual se faz a farinha para o pão.
Mas, de acordo com técnicos, o produto brasileiro é ainda superior, característica que em algumas regiões não é acentuada em razão de processos que acabam misturando grãos de qualidades distintas. O trigo tropical não tem o mesmo problema e agricultores do Cerrado entregam produtos equiparados aos melhores do mundo, os do Canadá.
Ideologia
Estima-se que o Brasil vai gastar este ano aproximadamente R$ 10 bilhões com a importação do grão e da farinha de trigo. Para além do respiro econômico, há um aspecto político no esforço nacional em direção à autossuficiência. O presidente Jair Bolsonaro tem ressalvas ideológicas e busca um distanciamento da Casa Rosada desde que Alberto Fernandez assumiu o governo argentino. O mandatário e sua vice, Cristina Kirchner, lidam com uma profunda crise econômica.
O governo brasileiro, porém, não vê riscos à balança comercial. A Argentina tem aberto mercados para seu trigo na Ásia e agora tenta introduzir no Brasil, seu principal comprador de trigo, um polêmico cereal transgênico, ainda mais resistente.
“Quanto à relação com países do Mercosul, não vemos qualquer dificuldade, pois apesar de direcionarem parte da produção para o Brasil, há outros mercados para os quais já exportam”, diz ao Estadão a ministra da Agricultura, Teresa Cristina.
No DF, produtor quer ampliar área de trigo
Parte dos produtores do trigo tropical está na região do PAD-DF, o Programa de Assentamento Dirigido do Distrito Federal, implantado no fim dos anos 70 pelo governo local para submeter áreas rurais até então inexploradas a processos produtivos. Localizada a cerca de 80 quilômetros de Brasília, a região é um polo agrícola.
O produtor rural Fabrício Marchese, de 46 anos, recebeu a reportagem do Estadão em cima do trator com piloto automático que usava para lançar sementes de soja em uma área da propriedade de 400 mil hectares que possui no PAD-DF. O terreno em preparação fica ao lado dos 30 hectares do trigo que cultiva, quase na divisa com Goiás, em uma modalidade que para ele ainda é experimental.
Enquanto os triticultores da região já colheram os grãos, Marchese aguarda a fase final da maturação. Em vez de maio, como os demais, plantou em junho a semente do tipo 254, entre as safras de milho e soja. É uma estratégia para abastecer o solo com novos nutrientes e fazer renda extra. “Quando muda a estação, o dia fica longo e encurta o ciclo. O ciclo de 120 dias passa a ser de 100. A gente faz uma rotação de cultura a curto prazo e eu faço mais uma safra. Além de dar uma rentabilidade boa, ajuda no solo. A produção de soja melhora, tudo melhora.”
A previsão é colher 90 sacas por hectare, o dobro da média nacional. Caso confirmada a expectativa, o produtor deve ampliar os Campos de trigo na entressafra de suas culturas principais no ano que vem.
Tudo o que colhe vai direto para a cooperativa dos produtores rurais da região, instalada nas redondezas. Lá, o trigo vai para silos capazes de armazenar cerca de 250 mil sacas, até ser moído, tratado, peneirado e embalado. “É como lapidar um diamante”, explica o gerente de produção Rômulo Pereira. Por mês, a Coopa-DF processa 1 milhão de quilos de farinha, produto que vai para moradores do DF, Goiás e Minas Gerais.
Para o chefe-geral da Embrapa Trigo, Osvaldo Vasconcellos Vieira, a última barreira para o avanço do trigo tropical é a brusone, doença causada pelo fungo Pyricularia grisea que tem como sintoma mais comum o branqueamento de parte da espiga começando no ponto de infecção.
“Se resolvermos o problema da brusone, estamos a passos largos para mudar a geopolítica do trigo no mundo. O Brasil pode não só ser autossuficiente, mas exportador. Esse é o grande desafio da pesquisa, e acho que estamos muito próximos disso.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Por Vinícius Valfré
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