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‘Novo consumidor’ leva empresas a buscar maior inclusão de negros

Quanto mais perto do topo, menos negros. Basta uma olhada nas cadeiras de presidentes das 100 maiores empresas brasileiras listadas na B3 para se constatar essa realidade: só brancos estão sentados ali. Quando se desce mais um pouco na hierarquia, a proporção não melhora muito. Levando-se em conta toda a economia, quando se fala em diretores e gerentes, apenas 6% e 4,7%, respectivamente, são negros – isso numa sociedade em que eles são mais de 50% da população.

É um quadro histórico, que tem suas raízes no passado escravocrata do País e que, claro, não está restrito à economia. Mesmo na Câmara dos Deputados, que deveria ser um espelho da população, apenas 4% dos parlamentares se declaram pretos (e 20% se dizem pardos). No caso das empresas, a novidade é que começam a ganhar visibilidade movimentos para se tentar mudar isso.

Há pouco mais de uma semana, Magazine Luiza e Bayer anunciaram programas de trainees que aceitarão exclusivamente pessoas negras. No caso da rede varejista, a ação provocou grande discussão nas redes sociais, mas foi em geral endossada por especialistas e pela população. Segundo análise feita pela Refinaria de Dados, empresa especializada na coleta e análise de informações digitais, 38% das menções feitas ao tema foram positivas, ante 17% negativas – o que reflete até uma mudança no comportamento da sociedade, cada vez mais preocupada com a pluralidade. Há um novo perfil de consumidor, que se mobiliza por questões ambientais, raciais ou de diversidade de gênero.

Como reflexo disso, o papel das empresas também está mudando. Na era das redes sociais, em que as reputações estão constantemente em jogo, as companhias precisam estar cada vez mais conectadas à sociedade, aos consumidores, entender suas demandas e ser parte integrante das comunidades nas quais estão inseridas .

“Já havia uma consciência da necessidade de se mudar essa discrepância (em relação aos negros)”, diz Carlos Arruda, professor da Fundação Dom Cabral. “Mas o que era importante se tornou urgente após os movimentos antirracistas americanos, como o Black Lives Matter, que ganharam força após a morte do negro George Floyd.” Segundo ele, cresceu a pressão para que a intenção das empresas em aumentar a diversidade vire prática. A importância disso está expressa na preocupação crescente de investidores para que as companhias adotem as melhores práticas ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês). A era do lucro a qualquer custo parece estar ficando no passado.

Mas o lucro, claro, também faz parte disso tudo. As companhias perceberam que a diversidade traz vantagem competitiva. Um ambiente corporativo com pessoas de repertórios diferentes favorece a inovação, ajuda a empresa a se conectar ao consumidor e ampliar mercados. “As empresas descobriram que a diversidade dá lucro”, diz o coordenador executivo do Fórum Brasil Diverso, Maurício Pestana, que lança em outubro o livro A Empresa Antirracista.

“A diversidade maior nos nossos quadros de liderança vai gerar resultados maiores. (…) Se tivéssemos mais representatividade de mulheres e negros – que é nossa questão mais sensível hoje – na liderança, teríamos ações mais efetivas. Isso geraria mais vendas e, em última instância, mais retorno aos acionistas”, diz o presidente da Magazine, Frederico Trajano, em entrevista na semana passada.

Racismo inconsciente

Com base em pesquisas já feitas, Arruda, da Dom Cabral, conta que, embora os negros sejam selecionados para algumas vagas, ficam pelo meio do caminho. Segundo as companhias, por causa de deficiência na educação e falta de qualificação. “Há um processo inconsciente de racismo que surge no ponto de partida, ao exigir experiência internacional, carta de recomendação e fluência no inglês.”

Para compensar essas assimetrias socioeconômicas e de formação, o Magazine Luiza tirou, por exemplo, a exigência de conhecimento em inglês do processo para trainees. Os candidatos terão bolsa para estudar a língua. O objetivo é prepará-los para assumir cargos de liderança.

“Nossa sociedade é racista. Por isso, a escolha do igual acaba sendo natural”, diz Erik Torres Bispo dos Santos, primeiro vice-presidente negro da ArcelorMittal no Brasil. Ele está à frente do grupo Diversidade Racial da empresa, criado em 2019 com o objetivo de elevar a participação de negros em cargos de liderança. Carioca, filho de pai negro e bisneto de índio, ele avalia que sua ascensão está associada à educação. Santos, que foi promovido em setembro do ano passado, aos 44 anos, sempre estudou em escola pública, do primário à faculdade. “Mas reconheço que ser um pouco mais claro me ajudou. Meu irmão, que tem a pele um pouco mais escura, teve mais dificuldade.”

Os benefícios da inovação são o argumento da Bayer para apostar num programa para negros. Na avaliação da diretora de Recursos Humanos da Bayer no Brasil, Elisabete Rello, incluir é inovar. “Quanto mais mentes que pensam diferentes, que têm experiências diferentes, mais possibilidades a empresa terá de ser plural.”

De mil executivos formados, apenas 10 negros

Um termômetro da baixa participação dos negros no mercado de trabalho vem de uma das escolas mais importantes na formação de líderes no País. Segundo Carlos Arruda, professor da Fundação Dom Cabral, desde que o MBA foi criado, em 1989, mais de 1.000 executivos foram formados. Desse total, apenas 10 (ou 1%) eram negros. Agora, além de orientar as empresas na criação de programas de inclusão, a fundação também quer oferecer bolsas de estudos para negros.

Com uma formação mais robusta, especialistas acreditam que é preciso pleitear também presença nos conselhos de administração das empresas. O diretor da Associação de Pesquisadores Negros (ABNP), Ivair Augusto Alves dos Santos, conta que tem trabalhado com a Bolsa de Valores nessa direção. “Para quem está de fora, parece que esse processo começou agora. Mas são anos de luta pela igualdade.”

O quadro de desigualdade é reflexo de um racismo estrutural criado entre os séculos 19 e 20, com o fim da escravidão. “Isso fez com que tivéssemos cidadãos de 1.ª e 2.ª classe, afastando os negros da educação e do desenvolvimento econômico e social do País”, diz o coordenador do Fórum Brasil Diverso, Maurício Pestana.

Exemplo disso pode ser verificado na diferença salarial entre negros e brancos. O pesquisador da área de Economia Aplicada do FGV/ Ibre, Daniel Duque, diz que profissionais com formação semelhante têm rendimentos diferentes por causa da cor. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019 a renda média mensal dos negros era 55,8% da dos brancos. “Difícil encontrar motivos para justificar essa situação que não seja a discriminação”, diz Duque.

Pesquisa vê preconceito na hora da seleção

Os números e a mera observação mostram que é muito difícil para um negro chegar ao topo da carreira dentro de uma empresa. Mas as dificuldades no mercado de trabalho vão muito além disso. Segundo pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva para a Central Única das Favelas (Cufa), seis em cada dez trabalhadores negros dizem já ter se sentido preteridos em uma entrevista de emprego por conta da cor da pele.

O levantamento também mostra que, para quem supera o processo de seleção, os desafios podem continuar. Cerca de 40% dos entrevistados disseram que sofrem ou já sofreram preconceito por causa de sua cor dentro do trabalho. Para Renato Meirelles, do Locomotiva, os casos de racismo geralmente aparecem disfarçados de brincadeiras. “Uma entrevistada disse que, quando foi promovida, ouviu de um colega os parabéns por estar, agora, na casa grande da empresa.”

“As pessoas podem não falar, mas, quando se é negro, a gente percebe o racismo no olhar”, afirma o executivo do mercado financeiro Haroldo Nascimento. Ele conta, por exemplo, que quando participava com outros colegas de um congresso em um hotel na Zona Sul de São Paulo, foi surpreendido por um homem que lhe entregou a chave do carro. “Eu estava entrando no hotel e, de repente, o cara colocou a chave do carro dele na minha mão. Eu joguei a chave no chão e ele perguntou, assustado, se eu trabalhava lá. Respondi: Eu não, e você?.”

Cabelo

Para Neivia Justa, sócia da empresa de recursos humanos C-Level Group, os casos de preconceito racial durante processos seletivos são comuns. “Acontece o tempo todo”, diz. “Já ouvi inúmeras mulheres negras contarem ter ouvido dos recrutadores: Você precisa dar um jeito nesse cabelo se quiser trabalhar aqui.”

Segundo Neivia, que se especializou em diversidade de raça e gênero no ambiente corporativo, na maior parte das vezes a discriminação com um candidato negro se apresenta de maneira velada, quase imperceptível.

“Vou te dar um exemplo. Certa vez, apresentamos um alto executivo negro ao fundador de uma empresa de tecnologia. O candidato tinha todas as qualificações necessárias ao cargo, até o inglês fluente. Mas a reação do contratante ao se referir a ele foi: Nossa, que história incrível de superação a do fulano. Ele ficou buscando argumentos para desqualificar o moço”, diz.

Para o coordenador-geral da Faculdade Zumbi dos Palmares, Raphael Vicente, de maneira geral os processos de seleção são conduzidos de forma a excluírem os negros. “Há uma questão histórica envolvendo a forma como o País tratou dos negros e não é possível dissociar a questão racial da social. Quando o processo opta por candidatos que fizeram dois, três intercâmbios, faculdades caríssimas, ele está reduzindo as chances de um negro.”

“Quando o processo (seletivo) opta por candidatos que fizeram intercâmbios, faculdades caríssimas, reduz as chances de um negro.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Por Renée Pereira, com colaboração de Heloísa Scognamiglio

Estadão Conteúdo

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