Rafael Alves não tinha cargo na prefeitura do Rio, mas visitava o prefeito Marcelo Crivella de madrugada ou fazia com ele caminhadas matinais para tratar de negócios do município. José Carlos de Melo não tinha cargo na estrutura estadual, mas recebia secretários do governador Wilson Witzel para articular contratos e, segundo as investigações, pagar propina. Apontados como figuras centrais nos esquemas que atingiram a capital fluminense e o Estado nas últimas semanas, Rafael e José Carlos eram desconhecidos da população e não tinham seus nomes vinculados às gestões, mas atuavam de modo intenso nas sombras.
Os dois agiam com método parecido: faziam o meio de campo entre integrantes dos governos e empresas interessadas em firmar contratos. Tinham como ativos a boa interlocução com possíveis fornecedores e a particularidade de administrar dinheiro em espécie, como apontou o delator Edmar Santos, ex-secretário estadual de Saúde, ao relatar sua experiência com José Carlos, o “homem do dinheiro”. O empresário recebia com frequência secretários do Executivo fluminense em seu apartamento na Barra da Tijuca, zona oeste da cidade. Manteria, inclusive, um esquema de pagamento de mesadas para políticos do Rio – em troca, teria seus interesses atendidos.
O caso do empresário Rafael Alves com Crivella desperta atenção pela proximidade com o prefeito. Foram 1.949 mensagens trocadas entre os dois durante o mandato, que começou em 2017. Por ter sido o principal articulador em prol de financiamento de campanha em 2016, Rafael controlava Crivella como se ele fosse um subordinado seu, de acordo com a Justiça. “Não quero cargo nem status, quero retorno do que está sendo investido”, disse ele em mensagem-síntese apreendida pelo Ministério Público.
Em conversas com o doleiro Sérgio Mizrahy, que virou delator, Rafael diz que precisa passar no condomínio Península, “na casa do chefe”, para “deixar um lance lá”. Trata-se do condomínio em que mora o prefeito, na Barra da Tijuca. O “lance”, segundo as investigações, seria dinheiro vivo.
Rafael, que foi alvo de busca e apreensão na semana passada, mesmo dia em que Crivella foi atingido pela operação, já havia passado por isso em março, quando apreenderam os celulares em que estavam essas conversas. Ele é apontado como o operador do que ficou conhecido como “QG da Propina”. Seu irmão, Marcelo Alves, era presidente da Riotur, responsável pelo turismo na cidade. Também alvo em março, Marcelo foi exonerado do cargo.
José Carlos de Melo, por sua vez, era menos soberano nos esquemas estaduais. O grupo encabeçado por ele disputava espaço com outros dois que também tentavam se beneficiar de acordos espúrios: o do Pastor Everaldo, presidente nacional do PSC, e o do empresário Mário Peixoto, cujas empresas têm há anos contratos com o Estado. Os três estão presos. Ex-pró-reitor da UNIG, universidade privada em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, José Carlos não tem empresas que prestam serviços para o governo, mas atuava para beneficiar algumas delas em troca de movimentações ilícitas em espécie, segundo a investigação.
O empresário era, antes do governo Witzel, integrante do grupo de Peixoto, mas viu depois a oportunidade de trilhar um caminho próprio e disputar espaço. Segundo o delator Edmar, Peixoto não honrava certos compromissos, o que levava alguns políticos a procurarem José Carlos. O principal parceiro dele no governo seria Leonardo Rodrigues, segundo suplente do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) que foi exonerado na manhã desta quarta-feira, 16, pelo governador em exercício, Cláudio Castro. Rodrigues receberia mesada de R$ 150 mil do empresário, de acordo com a investigação. Edmar, por sua vez, afirmou ter recebido dele R$ 600 mil.
Outro diferencial de José Carlos seria sua proximidade com agentes da Polícia Federal, o que lhe daria informações privilegiadas sobre apurações em andamento contra representantes do poder público. “Assim, tem-se que José Carlos de Melo desempenha importantes funções na organização criminosa, relacionadas tanto ao pagamento de propina para agentes públicos, com o intuito de obter contratos para empresas de sua influência, quanto ao fornecimento de informações sigilosas a respeito de investigações em andamento contra integrantes do grupo criminoso”, escreve a sub-procuradora geral da República, Lindôra Araújo, na denúncia contra a suposta organização criminosa de Witzel.
José Carlos foi preso no dia 31 de agosto, após passar três dias foragido. Quando os agentes chegaram para cumprir o mandado na casa do empresário, no dia 28, havia indícios de que ele sabia da operação – garagem vazia e computador sem dados disponíveis, por exemplo. O Estadão não localizou sua defesa.
Rafael Alves não foi preso, apesar de ter sido alvo de dois mandados de buscas. A investigação, que ainda não rendeu denúncia, segue em andamento no Ministério Público do Rio. Ele tem negado as acusações e dito que vai se defender; alega que está há nove meses tentando prestar esclarecimentos ao MP, mas ainda não conseguiu.
Afastado do cargo por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Witzel é acusado de comandar a suposta organização criminosa no Estado. Ele já é alvo de duas denúncias do MPF e também está prestes a sofrer outro afastamento – agora pela Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Segundo a Procuradoria, o mandatário fluminense teria recebido, junto com Pastor Everaldo, R$ 50 milhões em propina. Os desvios teriam ocorrido inclusive durante a pandemia.
Witzel critica o vazamento da nova denúncia contra ele, apresentada nesta semana, e o atribui a uma tentativa de prejudicá-lo politicamente. “Reafirmo minha idoneidade e desafio quem quer que seja a comprovar um centavo que não esteja declarado no meu Imposto de Renda, fruto do meu trabalho e compatível com a minha realidade financeira. Todo o meu patrimônio se resume à minha casa, no Grajaú, não tendo qualquer sinal exterior de riqueza que minimamente possa corroborar essa mentira. O único dinheiro ilícito encontrado, até agora, estava com o ex-secretário Edmar Santos”, afirmou, em nota.
Crivella continua no cargo e não foi denunciado; passou apenas por busca e apreensão. A investigação busca comprovar sua participação no esquema de pagamento de propina em troca de benefícios a empresas. As apurações renderam novo pedido de impeachment do prefeito, apresentado pelo PSOL. A Câmara Municipal deve decidir nesta quinta-feira, 17, se abre ou não o processo.
O prefeito, que é candidato à reeleição, associa as acusações à Rede Globo e afirma que pediu para a Justiça quebrar o sigilo da decisão cujos detalhes vinham sendo noticiados pela emissora. Ele alega que a operação é uma tentativa de interferência no processo eleitoral. “Desde o primeiro momento, o prefeito Marcelo Crivella informou que ele já havia colocado à disposição do Ministério Público, antes da operação, os seus sigilos bancário, telefônico e fiscal, por conta de denúncias publicadas na imprensa”, diz a assessoria.
O prefeito afirma ainda que refuta as denúncias e as “ilações” que estão sendo feitas envolvendo seu nome. “O prefeito está absolutamente tranquilo e ciente que enfrenta uma batalha com uma emissora de televisão, cujos interesses deixaram de ser atendidos em sua gestão.”
Por Caio Sartori
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