Os brasileiros aproveitaram o feriado da Independência para decretar por conta própria o fim das medidas de isolamento e prevenção à covid-19. Infringindo diversas regras municipais e estaduais, lotaram cidades turísticas, praias e bares, muitas vezes sem usar máscara. Especialistas ouvidos pelo Estadão tentaram explicar as razões neurológicas, sociológicas e econômicas para esse comportamento.
Algumas circunstâncias explicam parte do movimento. Este foi o primeiro feriado prolongado, por exemplo, em que as regras da quarentena já estavam flexibilizadas. Ou seja, a primeira chance real, desde o carnaval, quando não havia casos oficiais, em que a população poderia viajar para cidades próximas, frequentar restaurantes e até tomar um banho de mar.
“As pessoas decretaram por elas mesmas o fim do isolamento, não há nenhuma dúvida sobre isso”, diz o infectologista Alexandre Naime Barbosa, da Unifesp. “E fizeram isso sem seguir as regras da flexibilização, que é um conjunto de novas condutas, que exige a modificação de hábitos, o uso de máscara, o distanciamento social, a higiene reforçada. Então, o que fizeram, de verdade, não foi a flexibilização, mas sim a normalização, a banalização da ameaça”, ressalta.
“Existe um jogo dentro do cérebro humano ao analisar uma situação de risco”, explica Naime. “Inicialmente, a doença era muito desconhecida, não tinha ainda chegado ao País, havia uma histeria grande, muito medo, e muita gente foi para o isolamento.” Agora que a epidemia já é uma realidade há mais de seis meses, muita gente decide que, se nada grave aconteceu consigo até agora, então não deve ser tão perigoso assim.
“É um comportamento egoísta, de quem olha mais para si e menos para os outros, e faz uma avaliação equivocada de que talvez o maior risco já tenha passado”, explica o neurocientista Luiz Eugênio Mello, diretor científico da Fapesp. “Um outro ponto é a fadiga da quarentena: as pessoas se cansam de ficar em casa.”
Para o cientista social Renan Gonçalves Leonel da Silva, da Faculdade de Medicina da USP, o movimento visto no feriado seria, majoritariamente, da classe média, que neste ponto da epidemia tem registrado bem menos casos de covid. “Essas pessoas têm acesso à informação, elas sabem que a pandemia não acabou, mas, quando vão avaliar o risco para si mesmas, aspectos não científicos pesam mais. A classe média estava privada de seu papel de consumidor e agora essa bolha explodiu: vou voltar ao meu papel porque já deu, vou resgatar a posição social a despeito da responsabilidade com a saúde pública.”
Outro pano de fundo importante, segundo os especialistas, é o fato de notícias indicarem que uma vacina pode já estar disponível no fim deste ano ou no início de 2021, elas avançaram, além das notícias dando conta da redução da velocidade de crescimento da epidemia. “A tendência da população é ir atrás do que é mais fácil de entender”, explica o cientista social. “Se todo dia temos 1.200 mortes e, num belo dia, temos 800, há um gatilho mental que nos faz entender que a epidemia está diminuindo, embora o número continue muito alto.”
Por fim, nunca houve um discurso uniforme entre o governo federal e as autoridades estaduais e municipais. “Aqui a epidemia se transformou numa questão política”, avalia a especialista em saúde pública Chrystina Barros. “As autoridades não conseguem ser coerentes, muitas aglomeram sem máscara, são vários sinais trocados.”
Não faltaram exemplos de desrespeito pelo País. Na madrugada de sábado, as ruas do bairro do Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, voltaram a ser ponto de grande aglomeração de pessoas. Nas redes sociais, as imagens compartilhadas por quem estava lá mostravam um clima de carnaval fora de época. No dia seguinte, mesmo proibidos, os guarda-sóis ocupavam todos os espaços na Praia de Ipanema e outras.
Pela primeira vez desde o início da pandemia, hotéis e pousadas de diferentes regiões do Brasil tiveram alta na procura por vagas e unidades operando no limite da capacidade permitida.
Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH Nacional), os turistas optaram por fazer deslocamentos mais curtos e dentro da própria região – em alguns lugares, a taxa de ocupação chegou a atingir 90%. “A procura aumentou principalmente para os destinos regionais, como Jericoacoara (CE), Porto de Galinhas (PE), Pipa (RN)”, diz Manoel Linhares, presidente da ABIH Nacional. “O brasileiro está cansado do isolamento”, completa.
Um dos principais destinos turísticos do Nordeste, Porto de Galinhas, em Pernambuco, teve vagas disputadas no feriadão. “Lotou na sexta, no sábado e no domingo. O telefone não parava de tocar. Também teve muita gente que bateu na porta, sem avisar, e precisou voltar porque não tinha mais vaga”, conta a recepcionista Solange Gomes, a Sol, da Pousada Maria Bonita – a lotação máxima permitida é de 50%. Mas Linhares diz que o setor de turismo “vai ser o último a sair da crise”. “Se a gente considerar fins de semana e feriados, são oito dias por mês com boa ocupação: a hotelaria não sobrevive.”
O feriado já trouxe certo esvaziamento nas areias da Baixada Santista, como o tempo nublado e a temperatura na casa dos 20°C. As estradas começaram a ter trânsito na volta para a capital logo cedo – Santos ainda tem feriado municipal hoje.
A fiscalização foi ampliada. De sábado até as 15 horas desta segunda, a Guarda Civil Municipal registrou 2.623 orientações sobre uso da faixa de areia e 1.374 instruções sobre uso obrigatório de máscara facial. O mesmo ocorreu em Caraguatatuba. Entre as Praias Martin de Sá e Prainha, 19 estabelecimentos foram notificados por desrespeitar o distanciamento das mesas e ter clientes sem máscaras. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Por Roberta Jansen, com colaboração de Felipe Resk e Glauco Braga, especial para o Estadão
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