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Retomada verde pode evitar metade do aquecimento global previsto até 2050

No auge da pandemia de covid-19, um meme das redes sociais fazia um alerta de que os trágicos impactos do coronavírus são só a primeira onda a nos atingir. Na ilustração, logo atrás vinha uma segunda onda maior, da recessão, e depois dela, uma maior ainda, das mudanças climáticas.

Não era uma brincadeira. Cientistas afirmam que os danos da pandemia e da crise econômica são só uma fração do que se pode esperar das mudanças climáticas que já estão em curso – essa sim considerada a mãe de todas as crises.

Mas se há alguma boa notícia nesse cenário é que as três crises podem ser enfrentadas de modo interligado. Se é preciso recuperar economias, que isso seja feito de modo a tornar as sociedades mais resilientes à mudança do clima, defendem os especialistas, o que de quebra pode torná-las também mais preparadas para eventuais novas pandemias.

Não é à toa que as mudanças climáticas são o principal motor por trás do movimento de retomada verde em todo mundo. O conceito prevê que os necessários novos investimentos sejam direcionados para setores que dialogam com as políticas de combate ao aquecimento global e para empreendimentos sustentáveis com baixo impacto socioambiental.

Um estudo publicado no início do mês na revista Nature Climate Change – que analisou como a paralisação da economia por causa das políticas de isolamento e quarentena reduziu temporariamente as emissões globais de gases de efeito e de poluentes -, projetou que incluir medidas de políticas climáticas como parte da recuperação econômica pode trazer resultados mais permanentes e de fato desacelerar o aquecimento do planeta.

O trabalho, liderado por pesquisadores da Universidade de Leeds, no Reino Unido, comparou um cenário em que a recuperação econômica seja feita com base nos mesmos níveis atuais de investimento em combustíveis fósseis com outro em que haja fortes estímulos verdes e redução de carbono.

No primeiro, calcula o grupo, o aquecimento médio do planeta provavelmente vai exceder 1,5°C já em 2050, na comparação com a temperatura pré-Revolução Industrial. Já no segundo, seria possível evitar um aquecimento de 0,3°C até aquele ano. Como o planeta já está cerca de 1°C mais quente, os cientistas indicam que há um potencial de reduzir pela metade o nível de aquecimento nos próximos 30 anos.

“As escolhas feitas agora podem nos dar uma grande chance de evitar 0,3°C de aquecimento adicional até meados do século, reduzindo pela metade o aquecimento esperado com as políticas atuais. Isso pode significar a diferença entre o sucesso e o fracasso quando se trata de evitar mudanças climáticas perigosas”, afirmou Piers Forster, principal autor do trabalho.

O trabalho destaca medidas como incentivo a veículos de baixa emissão, transporte público e ciclovias. “A melhor qualidade do ar terá efeitos importantes na saúde – e começará a esfriar o clima imediatamente”, complementa Forster.

Não deixar o aquecimento do planeta superar 1,5°C é um marco dos esforços mundiais de combater as mudanças climáticas. Mas o plano é segurar esse aumento da temperatura até o fim do século. Este é o objetivo estabelecido pelo Acordo de Paris, compromisso estabelecido por quase 200 países, por ser considerado o mais seguro para evitar impactos mais dramáticos à vida no planeta.

Reduzir emissões e gerar empregos

Algumas pesquisas já mostram vantagens também para o Brasil. Um estudo publicado em meados de agosto pelo WRI Brasil e a aliança global New Climate Economy calculou que adotar princípios de retomada verde em ações de infraestrutura, inovação industrial e no agronegócio podem reduzir 42% das emissões de gases de efeito estufa do Brasil até 2025, na comparação com o que era emitido em 2005. E ainda gerar 2 milhões de empregos, além de acrescentar R$ 2,8 trilhões ao PIB.

Essa redução de emissões é mais até do que o País prometeu fazer no Acordo de Paris, que é cortar as emissões em 37% até aquele ano.

Para chegar a isso, indica o estudo “Uma Nova Economia para uma Nova Era”, é preciso avançar na implementação de veículos elétricos ou híbridos, ter maior eficiência do setor de construção, mais energias renováveis e uso de materiais de baixo carbono e uma agropecuária de maior produtividade. Além de também investir em restauração florestal e reduzir as pressões de desmatamento ilegal.

Hoje, a devastação da Amazônia é a principal fonte no Brasil de emissões de gases que provocam o aquecimento global. Para reduzir sua contribuição ao problema, o País se comprometeu, no âmbito do Acordo de Paris, a zerar o desmatamento ilegal até 2030, além de adotar uma série de outras medidas que possam reduzir suas emissões.

Um grupo de pesquisadores ligados ao Instituto ClimaInfo, ao Observatório do Clima e ao GT Infraestrutura elaborou uma análise de como algumas das metas nacionais, assim como outras ações relacionadas com uma retomada verde inclusiva, podem ser uma resposta à crise econômica legada pela pandemia e à crise climática.

O trabalho, que será lançado em um webinar na próxima quinta-feira, 3, foi passado com exclusividade ao Estadão. O grupo calcula que medidas como restaurar 12 milhões de hectares de florestas até 2030 geraria 250 mil postos de trabalho.

Também são particularmente boas fontes de emprego as metas de aumentar a eficiência energética e a presença de fonte solar na nossa matriz energética. “Alcançar 10% de ganhos de eficiência energética no setor elétrico até 2030 exige um investimento anual da ordem de R$12 bilhões até 2030 que, por sua vez, geram 408 mil empregos nos próximos dez anos”, aponta o grupo em relatório que será divulgado junto com o webinar.

Ainda em energia, eles citam um cálculo da Absolar, que representa o setor de fonte fotovoltaica no Brasil. A entidade calcula que a cada megawatt de energia solar instalada no Brasil são gerados 30 empregos, contra 2,6 empregos de grandes hidrelétricas, como Belo Monte, e menos de 1 emprego em termelétricas a gás. Empregos verdes também tendem a ser mais bem remunerados.

Outra possibilidade nesse setor, defende o grupo, é instalar placas solares em residências. Além de ser uma fonte mais limpa, o trabalho calcula que investir R$ 1,05 milhão no período de três meses em energia solar distribuída permite instalar sistemas fotovoltaicos completos em mais de 260 mil residências de baixa renda, criando 6.300 empregos no curto prazo.

“Priorizar investimentos em alguns setores-chave gera empregos, crescimento econômico e melhora da qualidade de vida da população, além de reduzir as emissões dos gases responsáveis pela crise climática”, escrevem os autores. Eles buscaram identificar ações que podem começar a ser implementadas já no curto prazo. E que impactem a maioria.

A proposta, explica o físico Shigueo Watanabe Jr., pesquisador do ClimaInfo, é que os recursos públicos que já estão sendo liberados para recuperar a economia e empregos não sejam direcionados apenas para algumas empresas e setores. “Em vez de dar dinheiro para salvar atividades econômicas que nos trouxeram à atual situação, a ideia é poder salvar as pessoas e ainda ter benefício climático”, afirma o coordenador do trabalho.

O documento cita, como exemplo, o setor de resíduos: “Menos da metade do que é gasto atualmente com a coleta de resíduos sólidos, algo entre um ou dois bilhões de reais, seriam suficientes para organizar meio milhão de catadores a mais em cooperativas. Os novos catadores representam cerca de 7% do número de desempregados no país e significam maior movimentação na economia local”.

Considerando mais uma vez a interface com a crise sanitária da pandemia de covid-19, o trabalho também recomenda investimentos em saneamento. Um dos fatores crueis que mais contribuiu para a disseminação da covid em populações de baixa renda foi a impossibilidade de elas fazerem a higienização adequada para barrar o coronavírus.

Os pesquisadores lembram as metas do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), que prevê investimentos da ordem de R$ 30 bilhões por ano. “Como cada bilhão investido em saneamento gera 10 mil empregos apenas em obras, cumprir a meta do Plansab gera 300 mil empregos ainda este ano”, escrevem.

Impactos atuais e futuros

O tamanho do impacto climático está diretamente relacionado ao quanto vamos deixar o planeta aquecer ao longo dos próximos. Um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) publicado há dois anos apontou que 0,5°C a mais já pode fazer uma grande diferença.

Se o planeta aquecer 1,5°C até o fim do século, os impactos já existem, mas ainda são relativamente manejáveis. Se o aumento for de 2°C, a situação já fica mais dramática.

Recuperar a economia pós-pandemia é a oportunidade para deixar a sociedade mais resiliente, tanto para ser capaz de combater as mudanças climáticas quanto para lidar com o que seja inevitável delas.

Isso porque ela pode atingir praticamente todos os aspectos da nossa vida e os vários setores da economia. Um clima mais quente, por exemplo, pode levar a secas e enchentes mais extremas, que podem afetar a produção de energia e a agricultura, a segurança hídrica e a alimentar.

São esperadas grandes migrações humanas a partir de locais que vão se tornar inadequadas para a vida. Doenças transmitidas por mosquitos podem mudar sua área de distribuição e o próprio aumento da temperatura pode levar a mortes em situações de ondas de calor.

Um estudo recente de economistas norte-americanos estimou que se não forem adotadas medidas para conter as emissões de gases que aquecem o planeta, as taxas globais de mortalidade por causa do calor poderão chegar a 73 mortes por cada 100 mil pessoas até 2100. O número supera o total anual de mortes causadas por todas as doenças infecciosas no mundo, incluindo tuberculose, HIV/Aids, malária, dengue e febre amarela.

Com o aquecimento que temos hoje, diversos efeitos já são sentidos em todo o mundo, como o aumento da ocorrência de eventos extremos. Um trabalho divulgado recentemente pelo climatologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), revelou que chuvas intensas concentradas em poucos dias, separadas por longos períodos de seca estão sendo cada vez mais frequentes na Região Metropolitana de São Paulo.

Analisando ocorrências dos últimos 60 anos, Marengo e equipe observaram que situações que levam a deslizamentos, inundações repentinas ou secas vêm aumentando, assim como os seus impactos socioeconômico e ambientais.

Na semana passada, a Nasa divulgou que o derretimento da Groenlândia atingiu níveis recordes em 2019. Foram 532 bilhões de toneladas de massa perdidas, o maior volume desde 1948, quando começaram os registros. “Isso é água suficiente para elevar o nível médio do mar em 1,5 mm, o que é como cobrir toda a Califórnia em mais de 1,2 m de água”, afirmou a agência espacial norte-americana.

“Os mais vulneráveis são sempre os que estão perdendo, os primeiros a morrer. Na covid, vimos esse número de mortos, que é um horror. Mas quem trabalha com clima sabe que com as mudanças climáticas o número de mortes vai ser muito maior, infelizmente”, resumiu Ana Toni, diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade, em live realizada no Estadão na última segunda-feira.

“Vai ser com muito mais dor e quem vai estar na frente dessas mortes novamente são os negros, os que moram em periferia, os que estão mais vulneráveis em termos de pobreza. Então tanto a política de segurança pública, a de saúde, e a de clima, mostram que o tema da desigualdade é absolutamente fundamental. Promover resiliência, a adaptação nas cidades vai ser fundamental para a agenda climática brasileira”, alerta a economista e cientista política. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Por Giovana Girardi

Estadão Conteúdo

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