Três dos sete ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já votaram para que o dinheiro do Fundo Eleitoral e o tempo de propaganda no rádio e TV sejam divididos na mesma proporção de candidatos negros e brancos de cada sigla. A ofensiva do TSE para obrigar os partidos a usarem o critério racial para uma divisão mais igualitária de recursos enfrenta resistência no Congresso Nacional, que vê no julgamento uma intromissão do tribunal na autonomia de cada partido para gerenciar seus recursos.
A discussão foi interrompida nesta quinta-feira (20) por um pedido de vista (mais tempo para análise) do ministro Og Fernandes, mas o Estadão apurou que a maioria do TSE deve acompanhar o entendimento de que é preciso corrigir distorções históricas e evitar que os partidos sigam favorecendo políticos brancos. No centro da disputa estão os R$ 2 bilhões do Fundo Eleitoral destinados ao financiamento de candidaturas de prefeitos e vereadores nestas eleições.
Uma das questões em aberto é se a decisão do tribunal já será aplicada nestas eleições ou se a corte vai optar por uma espécie de “regra de transição”. Ao suspender a análise do tema, Og Fernandes prometeu aos colegas que devolveria o caso para julgamento na próxima terça-feira (25).
A discussão, iniciada em junho, gira em torno de uma consulta apresentada ao TSE feita pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), que pediu ao tribunal para estabelecer uma cota de 30% de candidaturas negras em cada partidos. Atualmente, as legendas não são obrigadas a lançar um número mínimo de candidatos negros e negras.
A medida foi rejeitada pelo relator do caso e presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, para quem uma iniciativa nesse sentido, com a criação de uma cota de candidatos negros, depende de legislação aprovada pelo Congresso. Barroso, no entanto, acolheu outro pedido da parlamentar, de que o dinheiro do fundo eleitoral e o tempo de rádio e TV sejam divididos na mesma proporção de candidatos negros e brancos de cada sigla. A análise foi retomada nesta quinta-feira com o voto do ministro Alexandre de Moraes, que acompanhou o entendimento de Barroso.
“A subrepresentação das pessoas negras nos Poderes, ao mesmo tempo que é derivada de um racismo estrutural existente no Brasil, acaba sendo também um dos principais instrumentos da perpetuação da gravíssima desigualdade social entre brancos e negros. Aqui temos um círculo extremamente vicioso, ao mesmo tempo que o racismo vem do sistema político eleitoral, esse mesmo sistema formatado a partir do racismo estrutural acaba sendo um dos principais instrumentos para perpetuação dessa gravíssima desigualdade social, e acaba ferindo diretamente a igualdade proclamada na Constituição Federal, ferindo não só a cidadania mas a dignidade das pessoas negras”, disse Moraes.
“Faço questão de salientar essa relevantíssima questão: o que se discute é a distribuição de recursos públicos. Tanto os recursos financeiros quanto o direito de arena, tempo de televisão e rádio, todos esses recursos são públicos e se são públicos, esses recursos devem respeitar em sua execução os fundamentos constitucionais da República”, acrescentou o ministro.
Em seu voto, Moraes ressaltou que não se tratar de substituir a atuação do Congresso, mas sim de “assegurar direitos fundamentais de grupos historicamente vulneráveis”. O ministro criticou a “ideia falsa de meritocracia que é usada para justificar toda ideia de desigualdade”. Também observou que negros e brancos podem ser candidatos – e quem for mais votado ganha. Mas observou que o sistema faz, de uma forma geral, que políticos brancos tenham muito mais recursos que negros – e apareçam mais na televisão -, o que leva os candidatos brancos a serem mais conhecidos do público que os políticos negros.
“De que vale a meritocracia na corrida se um dos competidores vai largar três quilômetros atrás do outro, e a corrida é de 100 metros? ‘Ah, mas quem corre mais ganha’. Aqui não há meritocracia, e isso se reflete de forma gravíssima no sistema político eleitoral. É a falsa ideia no sistema político eleitoral, a falsa ideia da inexistência de racismo no Brasil, em virtude da ocorrência da miscigenação no País”, frisou Moraes.
Além de Moraes e Barroso, o ministro Edson Fachin também votou a favor da distribuição de recursos do Fundo Eleitoral e do tempo de rádio e televisão segundo o critério racial, formando o placar provisório de 3 a 0.
Transição
Moraes propôs na sessão desta quinta-feira uma regra de transição para evitar que, com o novo entendimento do TSE, os partidos deixem de lançar candidaturas negras. Pela proposta de Moraes, cada partido deve destinar na campanha deste ano um volume de recursos a candidatos negros proporcional à quantidade de candidatos negros que apresentou nas eleições de 2016. Ou seja: se um partido teve 20% de candidatos negros em 2016, obrigatoriamente deve repassar 20% do Fundo Eleitoral e do tempo de rádio e TV para candidatos negros nas campanhas deste ano, não importa o número de candidaturas lançadas agora.
“Se na eleição anterior, o partido teve 20% de candidatos homens negros, o partido não vai poder cortar, ‘ah, agora não vou ter nenhum candidato negro, porque quero distribuir tudo pros candidatos homens brancos’. Não é uma cota de candidatura. Mas esses 20% de recursos (de 2016) vão ter de ser distribuídos agora para os candidatos negros. Se ele quiser ter só um candidato negro agora, ele vai ter 20% desses recursos”, explicou Moraes.
De acordo com o Estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado no ano passado, enquanto 9,7% das candidaturas de pessoas brancas a deputado federal tiveram receita igual ou superior a R$ 1 milhão, entre pretos ou pardos, 2,7% receberam pelo menos esse valor.
Embora correspondam a mais da metade dos habitantes do País, os brasileiros negros são sub-representados no Legislativo. Pretos e pardos eram 55,9% da população em 2018, mas representam 24,4% dos deputados federais e 28,9% dos deputados estaduais eleitos há dois anos, conforme a pesquisa. Dos vereadores eleitos em 2016, 42,1% eram pretos e pardos.
Na atual legislatura, as mulheres negras representam apenas 2,5% do total de eleitos na Câmara dos Deputados, enquanto as mulheres brancas são 12,28%, os homens negros 22,02% e os homens brancos 62,57%, segundo o estudo “Democracia e representação nas eleições de 2018”. O levantamento apontou que 26% das candidaturas a deputado federal eram de homens negros, mas esse grupo recebeu apenas 16,6% do total dos recursos.
Apoio
Até agora, apenas a bancada do PSOL na Câmara e o presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado, Paulo Paim (PT-RS), enviaram ao TSE – por livre e espontânea vontade – manifestações com apoio público à consulta sobre reserva de recursos para candidatos negros. “O Brasil vive um quadro de racismo estrutural e violência policial sistêmica, em especial nas periferias e contra pessoas negras, vide os índices alarmantes de letalidade policial acompanhado de ampla e generalizada impunidade dos agentes estatais. O enfrentamento desses graves problemas pressupõe, a nosso ver, o incremento da participação de negros e negras na formulação de políticas e tomadas de decisão”, afirmou o PSOL ao TSE.
Paim, por sua vez, pediu que a consulta seja aceita e que o entendimento do TSE já seja aplicado nas eleições de 2020. “A nossa Lei Maior preconiza a adoção de medidas afirmativas que possam contribuir para pôr fim a essa desigualdade histórica”, escreveu o senador.
Por Rafael Moraes Moura
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