O governo federal enviou a primeira parte de uma proposta de reforma tributária ao Congresso Nacional, em 21 de julho. O projeto de lei unifica dois impostos complexos (PIS/Cofins) em um único tributo novo, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com alíquota única de 12%.
A base da CBS é a mesmo do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), adotado em mais de 160 países. O argumento do governo é que o novo tributo simplificará o pagamento dos impostos por parte das empresas e deverá reduzir os litígios administrativos e judiciais em torno da cobrança do PIS e da Cofins.
O especialista Tiago Slavov, coordenador do Núcleo de Apoio Fiscal e Contábil da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap) e professor do Programa de Mestrado em Ciências Contábeis da Fecap, elencou os principais pontos da mudança proposta pelo governo. Confira:
MERCADO NEWS – A unificação do PIS e da Cofins é positiva?
TIAGO SLAVOV – A unificação é uma urgência, considerando a complexidade atual das duas contribuições. Em resumo, a unificação simplifica duas mil páginas de normas existentes sobre o PIS e a Cofins, melhora a transparência para o cidadão de quanto está pagando de tributo, simplifica a emissão da nota fiscal (reduz o número de campos do documento de 52 para 9) e simplifica as obrigações acessórias, o que reduz o custo com profissionais tributários. Afora isso, afeta toda a estrutura do Poder Judiciário e dos Tribunais administrativos, já que se estima que entre 20% a 25% dos processos tributários existentes se referem ao PIS e à Cofins.
MERCADO NEWS – Quais as vantagens e desvantagens da reforma tributária?
SLAVOV – A principal vantagem é que finalmente o Executivo, que já estava prometendo o projeto desde o início de 2019, submeteu o Projeto de Lei (PL) ao Congresso. A desvantagem é que a proposta, como está agora, é incompleta, pois alcança apenas o PIS e a Cofins. Segundo manifestação do Governo, caberá à Câmara e ao Senado a articulação para que a CBS incorpore também os tributos Estaduais (ICMS) e Municipais (ISS), conforme já definido na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/19, em discussão nas duas casas legislativas. O Governo também precisa submeter a proposta de simplificação do Imposto sobre a Produção Industrial (IPI) e as mudanças relacionadas ao Imposto de Renda. Ou seja, a proposta é parte de uma reforma tributária, mas não a reforma em si.
MERCADO NEWS – Quem perde e quem ganha com a reforma?
SLAVOV – Inicialmente, o PL oferece uma simplificação que favorece empresas, profissionais tributários e o consumidor final. Mas, como simplificação não é sinônimo de economia, as novas alíquotas e a nova sistemática podem implicar em preços maiores de produtos e de serviços. Especialmente, a principal novidade da norma é atribuir a responsabilidade de recolhimento dos tributos para as plataformas digitais, no caso do comércio eletrônico entre pessoas físicas. Ou seja, para evitar a sonegação nessa modalidade, o Governo adaptou o modelo do IVA Mini One Stop Shop, que funciona na Europa, para a realidade brasileira.
MERCADO NEWS – A reforma vai facilitar a vida dos contribuintes ou apenas gerar mais impostos?
SLAVOV – Como o Brasil é o país no mundo onde se “perde” mais tempo com a apuração de impostos (média de 1.500 horas por ano, por empresa, conforme o estudo Doing Business do Banco Mundial), a simplificação por si é vantajosa. Um sistema tributário menos complexo reduz custos para as empresas. Isso pode baratear os custos dos produtos. Contudo, apesar da defesa por parte do Governo de que a mudança da alíquota não trará aumento de arrecadação, espera-se que alguns setores e segmentos vão pagar mais tributos. O setor de serviços, especialmente.
MERCADO NEWS – A reforma pode impactar o comércio por aplicativos?
SLAVOV – Dependendo de como for implementada a adoção do modelo “IVA Mini One Stop Shop”, atribuindo responsabilidade tributária para as plataformas digitais, poderá provocar uma profunda mudança no comércio por aplicativos.
Exemplo: uma pizzaria que vende seus produtos pelo aplicativo é fiscalmente obrigada a emitir a Nota Fiscal para o destinatário. Se ela não faz isso hoje, está sujeita a fiscalização, mas não é responsabilidade do aplicativo. Com a nova sistemática, se a pizzaria não emitir a Nota Fiscal, o aplicativo cobrará os 12% do estabelecimento, repassando-o para o Governo. E isso vale mesmo para aplicativos que estejam estabelecidos fora do Brasil.
O problema, nesse caso, é que a pizzaria pode estar praticando um preço “sem nota”, e com a nova exigência passaria a praticar o preço “com nota”. Não vai necessariamente acrescentar 12%, pois se ela está no regime de tributação do Simples Nacional, a reforma não afetará esse regime tributário. Mas o imposto “sonegado” passaria a ser cobrado do cliente. E, é claro, se a plataforma terá mais responsabilidades e riscos, cobrará mais das empresas pelos serviços prestados.
MERCADO NEWS – Por que estados e municípios ficaram de fora?
SLAVOV – O governo federal argumentou que o Projeto não alcançou os tributos estaduais e municipais para “não ferir prerrogativas”, mas na verdade, como a PEC 45/2019 já está em discussão no Legislativo e ela incorpora a unificação dos tributos federais, estaduais e municipais, a sinalização do PL 3887/20 é principalmente um “apoio” e “contribuição” ao projeto já em discussão. Em outras palavras, a iniciativa do Executivo incentiva o avanço das discussões da PEC 45/2019 e garante que o Governo não seja deixado de lado do “protagonismo” na Reforma Tributária, como em certa medida ocorreu com a Reforma da Previdência.
MERCADO NEWS – Proposta para IRPJ também trará impactos?
SLAVOV – Aguardamos para as próximas semanas, conforme prometido pelo próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, a proposta de reforma do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, que prevê redução do IRPJ para as empresas e tributação de dividendos, gerando impactos mais significativos, especialmente no funcionamento do mercado de capitais e nas chamadas “pejotas”, ou prestadores de serviço.
MERCADO NEWS – Uma das prováveis mudanças da proposta do governo para a reforma tributária inclui a criação de um imposto sobre dividendos. Na sua avaliação, qual a chance desse novo tributo ser aprovado?
SLAVOV – A chance de a mudança ser aprovada é muito grande. O Brasil hoje é o país com uma das maiores alíquotas nominais de Imposto de Renda para as empresas, especialmente porque nos últimos anos, muitos países, incluindo os Estados Unidos, promoveram uma redução significativa de tributação corporativa, impulsionando uma “guerra fiscal” para atrair investimentos. Por outro lado, o Brasil é um dos países que menos tributam os dividendos pagos, o que contribui para provocar uma “distorção” no mercado.
MERCADO NEWS – Como essa mudança afeta quem investe na Bolsa?
SLAVOV – Na teoria, tributar menos a empresa e mais os dividendos estimula a empresa a reter lucros. Hoje se a empresa tem um lucro de R$ 100 e paga 30% de imposto, ela terá R$ 70 para distribuir em dividendos. E não faz diferença se esses dividendos forem distribuídos hoje ou no futuro, pois o imposto já foi pago. Com uma mudança na tributação, em que esses 30% sejam divididos, pagos 15% na empresa e 15% nos dividendos, a empresa que lucrar R$ 100 e pagar R$ 15 de imposto poderá “diferir” o pagamento dos outros $ 15 se o dividendo for pago depois. Nesse exemplo, dependendo a perspectiva do acionista, poderia até ser vantajoso tributar mais os dividendos e menos as empresas.
MERCADO NEWS – Quem compra ação pensando no recebimento de dividendos deve perder mais?
SLAVOV – É importante destacar que a “tributação sobre dividendos” não é tão novidade no Brasil, considerando-se uma “jabuticaba” tributária: os Juros sobre capitais próprios (JCP). Os JCP´s são uma forma de remuneração tributada que compõem o Dividend Yield (DY), que é o indicador que mede o ganho que o acionista tem com o recebimento de dividendos. Cabe observar que nos últimos anos, o DY com JCP é superior ao DY com dividendos. Uma mudança sobre a tributação dos dividendos deve vir acompanhada da extinção dos JCP. Um aspecto importante é que o JCP é uma forma de planejamento tributário para as empresas, pois o valor pago é dedutível. Logo, uma mudança do JCP poderia afetar a rentabilidade e, consequentemente, os dividendos.
MERCADO NEWS – Quem busca uma valorização no longo prazo pode ganhar?
SLAVOV – Um alinhamento das alíquotas e práticas de tributação de dividendos com os mercados internacionais pode favorecer, especialmente no longo prazo, o nível de internacionalização do mercado de capitais brasileiro, favorecendo os negócios e consequentemente a remuneração. É necessário enfatizar que atualmente, como já mencionado, com países tributando menos as empresas, especialmente o investidor estrangeiro tem mais receio de investir no país.
MERCADO NEWS – Os fundos de ações devem ser os mais impactados?
SLAVOV – Tudo dependerá das mudanças efetivamente implementadas. O que se sabe é que historicamente as mudanças tributárias adotadas pelo governo brasileiro aumentaram a tributação e a complexidade (o exemplo mais icônico são o PIS e a Cofins). Pensando sob o aspecto da complexidade, por exemplo, tributar apenas as pessoas jurídicas favorece a fiscalização, pois olhar milhares de contribuintes é melhor que analisar milhões de investidores.
Assim, o impacto nos fundos de ações dependerá da transparência e da efetividade dos métodos adotados pelo governo para tributar os dividendos. Por exemplo, hoje o JCP é tributado em 15% exclusivamente na fonte para o investidor pessoa física. Mas o governo poderia definir a tributação como os demais rendimentos financeiros, com alíquotas de até 22,5%. Assim, só será possível avaliar o impacto quando o “plano” for apresentado.
MERCADO NEWS – A reforma administrativa é mais importante que a tributária?
SLAVOV – Apesar de necessária e relevante, é preciso destacar que em termos econômicos, a reforma administrativa é mais importante que a reforma tributária: a primeira também está atrasada e afetaria os custos da máquina pública, reduzindo-os. Mas, politicamente, a reforma administrativa é ainda mais sensível aos interesses corporativistas.
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