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‘País se formou com o mito da natureza inesgotável’

José Augusto Pádua, professor da Universidade Federal do Rio (UFRJ) e coordenador do Laboratório de História e Natureza, vê os dados recentes de alta no desmatamento da Amazônia e conta que se sente muito frustrado. Não só pela perda da vegetação, mas pela sensação de que o País volta 50 anos no tempo. Para ele, há grupos que enxergam a Amazônia como os colonizadores viam a Mata Atlântica, só que 500 anos depois. Autor do livro Um Sopro de Destruição, Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista (1786-1888), Pádua aborda como o País historicamente lidou com suas florestas – e quais foram os erros e acertos. Veja abaixo sua entrevista ao Estadão.

Na derrubada de quase toda a Mata Atlântica, o País alternou ciclos agrícolas, industriais e expansão das cidades. A partir dos anos 1970, começa a ocupação da Amazônia, que perdeu 20% da área original. Como os momentos se relacionam?

Quando se torna propriamente país, em 1822, o Brasil começa com território muito grande, mas população relativamente pequena. Tínhamos 1,3 milhão de km² de Mata Atlântica, uns 4 milhões de km² de Amazônia e, entre as duas, diferentes tipo de savana (especialmente 2 milhões de km² de Cerrado). A população era de 4,5 milhões. A sociedade brasileira se formou com a sensação de natureza ilimitada, mito da natureza inesgotável. Para a população fragmentada em manchas regionais, olhando grandes massas florestais, pareciam oceanos verdes sem fim.

O que os 12% remanescentes da Mata Atlântica hoje dizem sobre esse pensamento?

Uma ilusão. A Mata Atlântica, onde se concentravam atividades socioeconômicas, em alguns séculos, principalmente no 20, foi quase toda destruída. Grandes áreas de vegetação nativa cobriam o território. Tudo se fazia desflorestando. A energia vinha da lenha, as construções usavam madeira. Mesmo assim, população e economia eram tão pequenas, que no início do século 20, estima-se até então perda de 5% a 10% da Mata Atlântica. Ao longo do século 20, a população pula para 170 milhões. Acontece industrialização, se abrem ferrovias, depois rodovias. Se usa muita madeira para gerar energia, aumentar cidades. No século 20 ocorre a grande destruição da Mata Atlântica, detonada nas décadas de 30, 40, 50, 60. E continuou em 70, 80.

Foi nessa época que o foco mudou para a Amazônia?

Só que é quando começa a haver mudança global na visão sobre florestas tropicais. De ameaçadoras, passam a ser vistas como ameaçadas.

A destruição da Mata Atlântica não serviu de lição?

Nas décadas de 1930, 40, 50, 60, praticamente não havia organizações ambientalistas, tinha meia dúzia de cientistas mais preocupados. Na imprensa, eventualmente saía algo, mas pouco. Nos governos, não havia órgãos ambientais. Mas quando se chega na Amazônia, o mundo começava a mudar e a preocupação ambiental passa a crescer. As Nações Unidas fazem a 1.ª conferência ambiental em 1972. E imagens de devastação das florestas, queimadas, poluição, começam a circular com rapidez. A Mata Atlântica já estava nos últimos remanescentes. Na Amazônia, a nova mentalidade sobre importância ecológica, econômica e social da floresta em pé começa a se manifestar no momento em que está no início da exploração mais intensa. Já tem reação de cientistas, ambientalistas, populações locais.

Mas mesmo isso não foi capaz de evitar que fosse desmatada.

Podemos diferenciar – desde a Mata Atlântica até a Amazônia -, atores econômicos e sociais imediatistas, que veem a floresta só como ganho de curto de prazo, e os que veem a floresta seja em na importância sistêmica, como patrimônio – em termos de beleza, importância científica -, seja de forma utilitária, mas muito mais ampla. Fundamental para a saúde climática, o futuro da biotecnologia, de setores sofisticados da economia. Ao contrário da Mata Atlântica, em que o desmatamento foi junto com o crescimento de economia e sociedade, na Amazônia não foi espontâneo. Foi um projeto geopolítico de ocupação. Na década de 70, cerca de 13% da população morava lá, com pouca ocupação “moderna”. O regime militar vê um grande vazio social. Não havia necessidade econômica imediata da Amazônia para o Brasil. O importante era levar atividades econômicas e gente, independentemente da qualidade social e ambiental. A perspectiva era repetir na Amazônia o mesmo da Mata Atlântica. Mas já havia consciência crítica internacional e nacional, na ciência e na opinião pública. Havia um projeto geopolítico, mas que descambou no descontrole. Imaginaram que seria possível ocupação organizada, mas depois que solta o demônio do desmatamento, a coisa vai por si. Conflitos imensos entre população local e atores que vinham de fora. Serra Pelada é a imagem do caos. As lutas de povos da floresta, indígenas, seringueiros, foram importantes. Todo o impacto, por exemplo, pelo assassinato do (líder seringueiro) Chico Mendes.

A pressão externa tem sido forte em reação à alta de desmate e queimadas. Isso ocorreu em outros momentos. Quanto acha que isso pesou no passado para mudar ações governamentais?

A pressão externa foi importante, mas a ciência, a opinião pública e o ambientalismo nacionais também tiveram peso importante. E começaram a surgir novas possibilidades tecnológicas, com satélites. O programa Nossa Natureza, criado pelo (ex-presidente José) Sarney, está diretamente ligado ao contexto que levou ao assassinato de Chico Mendes. E o mais importante do programa foi lançar o Prodes (sistema que aponta o desmatamento oficial da Amazônia) em 1988, que transformou o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, ligado ao Ministério da Ciência) no mais importante centro de detecção de desmatamento do planeta. É doloroso ver atritos do atual governo com a preciosidade tecnológica que temos nas mãos.

Mas antes mesmo do governo atual, o desmate já tinha voltado a subir a partir de 2013, como o ministro (do Meio Ambiente) Ricardo Salles sempre lembra.

É uma meia verdade. Depois de baixar dos 5 mil km2 em 2014, o desmatamento flutuava próximo de 7 mil. Mas não houve desmantelamento da política de contenção. Não pulou para 10 mil km2, como no ano passado com (Jair) Bolsonaro. Só que os atores locais da devastação estão começando a se chocar com uma economia mais poderosa, os grandes fundos de investimento e grandes empresas, o setor mais moderno da economia, do próprio agronegócio, que vê no descontrole uma roubada. O imediatismo não leva a nada. O que o garimpo produz em termos de real progresso para a região?

Ao receber críticas externas, sobretudo da Europa, o governo costuma dizer que eles destruíram tudo no passado e não teriam direito de nos cobrar agora. Faz sentido historicamente?

É importante entender especificidades de cada momento e a geografia de cada lugar. Não é todo País que tem como ponto de partida um território tão florestado. E o que ocorreu em vários países da Europa e nos EUA foi semelhante ao que ocorreu na Mata Atlântica. Não é que o Brasil preservou todas as florestas. Preservou a Amazônia, ou pelo menos ela ainda é muito grande, porque população e economia estavam concentradas na Mata Atlântica. Grandes potências destruíam florestas na Ásia, África, América Central. Brasil, e mesmo Portugal, estavam concentrados na Mata Atlântica. A Amazônia, de difícil acesso, ficou nesse limbo de devastação. Há vários países com mais cobertura florestal no território. Suécia tem 69% do território coberto, assim como o Japão. O Brasil tem cerca de 56%, mas isso por causa da Amazônia. Mesmo a Alemanha tem 32%, a França, 29%, os EUA, 33%. Países que fizeram revoluções industriais e desflorestaram muito, depois recuperaram, reflorestaram, reconheceram a importância das florestas. A ideia de que destruíram lá atrás é verdade, assim como destruímos, mas muitos trabalham para restaurar e cuidar de suas florestas.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

Por Giovana Girardi

Estadão Conteúdo

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