Os primeiros casos de aids no mundo foram registrados entre 1977 e 1978 nos Estados Unidos, Haiti e África Central. No Brasil, o primeiro relato é de 1980, mas a doença só seria classificada como tal dois anos mais tarde. Logo, os cientistas buscaram entender a nova enfermidade, a causa dela e iniciaram pesquisas para um tratamento. Nada tão rápido quanto vemos agora com o novo coronavírus. Só em 1987 é que começaram a prescrever um medicamento aos doentes.
Do início até aqui, mais de 40 anos se passaram até que, pela primeira vez, uma pessoa ficou um longo período de tempo sem manifestar o HIV no organismo após se tratar apenas com uma combinação de remédios. Estamos falando de um brasileiro que participou de um estudo em escala global que foi destaque na 23.ª Conferência Internacional de Aids, que ocorreu esta semana.
O resultado é inédito, porque outros três casos conhecidos mundialmente, de homens de Berlim, Londres e Dusseldorf, tiveram como princípio da remissão do vírus o transplante de medula óssea. “Isso significa muito em termos de segurança”, disse ao Estadão, em entrevista por e-mail, o pesquisador italiano Andrea Savarino, co-autor do estudo que conseguiu eliminar, por 15 meses até agora, o HIV do homem que mora em São Paulo.
“Todos aqueles homens foram tratados com transplante de medula óssea porque apresentavam uma neoplasia maligna que os mataria se esse regime não tivesse sido realizado. Timothy Brown e Adam Castillejo têm muita sorte, pois esse procedimento foi tentado em vários outros casos que não sobreviveram”, disse o médico, que é investigador principal no Instituto Italiano de Saúde.
Os médicos consideram o transplante de medula perigoso para tratar ou tentar curar HIV porque o procedimento consiste em eliminar a capacidade do indivíduo de criar suas próprias células imunes, deixando essa tarefa para a nova medula óssea.
Teoricamente, o novo sistema reconheceria as células do receptor do vírus como possíveis alvos a serem eliminados. Porém, além da alta mortalidade, a técnica é considerada antiética para quem não tem indicação de tratar um câncer hematológico. O fato de o resultado inédito ter ocorrido no Brasil também mostra o potencial da ciência feita por aqui.
“Com isso, colocamos a nossa ciência em uma posição de destaque no mundo. Este paciente tem um perfil de resposta muito semelhante aos pacientes que receberam o transplante, como por exemplo um decaimento nos títulos de anticorpos. Inclusive, o paciente brasileiro tem agora resultado negativo para o teste rápido de HIV”, comenta Leila Bertoni Giron, que também atuou no estudo e falou ao Estadão por e-mail. Atualmente, ela é pós-doutoranda no Wistar Institute, na Filadélfia, Estados Unidos.
Embora o caso tenha sido promissor, os cientistas olham para ele com cautela e afirmam que ainda não é possível falar em cura. “Ainda é muito cedo porque ainda é recente. Existem alguns estudos que relataram a volta do vírus em dois anos, mas podemos, sim, falar que o paciente está em remissão”, diz Leila. Savarino destaca que eles precisam ainda completar algumas análises e levar em consideração esses casos em que a carga viral se recupera anos após a suspensão da terapia.
Sabe-se que uma pessoa infectada pelo HIV pode viver anos sem manifestar a aids, mas é preciso um tratamento contínuo com antirretrovirais para impedir a multiplicação do vírus e o enfraquecimento do sistema imunológico. De 30 voluntários inicialmente recrutados para o estudo, todos com carga viral indetectável e fazendo tratamento padrão, cinco receberam uma combinação a mais de medicamentos. Foram usados uma droga mais forte chamada dolutegravir e o maraviroc, que “força” o vírus adormecido a aparecer.
Outras duas substâncias potencializaram os efeitos dos remédios, a nicotinamida e a auranofina. Savarino tem dedicado especial atenção à ação da nicotinamida nas células imunes, e o composto também se mostrou capaz de tirar o HIV do estado de latência, em que o vírus não é identificado pelo sistema imunológico durante a terapia antirretroviral. Os pesquisadores ainda não têm um indício do que pode ter favorecido o resultado positivo em apenas uma pessoa. O médico italiano explica que o paciente estava na fase crônica da infecção por HIV e mostrou sinais de deterioração imunológica quando a terapia antirretroviral foi iniciada.
Leila completa que o homem se beneficiou do efeito reversor de latência de dois medicamentos associado ao aumento de imunidade proporcionado por um dos remédios. “Também não há indícios de que o tratamento não ajudou de alguma forma os outros pacientes”, diz ela. Os grupos de voluntários que não receberam o mesmo tipo de tratamento intensificado também não apresentaram nenhum efeito benéfico aparente, afirma.
Desafios e expectativas
De acordo com especialistas no estudo de HIV/aids, o maior desafio para a cura é eliminar o reservatório de células inativas onde o vírus fica adormecido, nas quais os medicamentos atuais não são capazes de agir. É como se o vírus se tornasse parte do corpo humano ao integrar o próprio DNA com algumas células humanas, e a célula adormecida não é diferente de uma célula não infectada.
“O nosso sistema imune não é capaz de reconhecer essa célula e eliminá-la e ela volta a produzir vírus muito rapidamente quando o medicamento é suspenso, por isso o tratamento é para vida toda”, afirma Leila. A pesquisadora trabalha com o tema desde 2008 e tem visto cientistas cada vez mais capazes de detalhar essa célula com o vírus latente. Eles também têm conseguido desenvolver ferramentas para detectar baixas quantidades do HIV em diversos tecidos a fim de entender se ele é capaz de se replicar ou não.
“Entendemos muito mais sobre a biologia do vírus, mas ainda precisamos aplicar ainda mais o conhecimento básico em ensaios clínicos, ou seja, conectar a ciência básica com a pesquisa clínica, que foi justamente o que fizemos”, comenta ela. É um trabalho árduo, demorado e que gera muitas expectativas por uma cura, ainda mais quando se tem conhecimento de um resultado tão positivo em um ser humano. E expectativa é algo que os próprios pesquisadores têm de manejar. “Nós estamos muito empolgados com esse resultado que vem de um trabalho de anos. Mas o momento requer cautela para termos certeza desse resultado”, diz Leila.
Para Savarino, seguir com esses trabalhos em tempos de pandemia do novo coronavírus gera outro tipo de expectativa. “Prioridade absoluta é dada à pesquisa sobre covid-19 e as pessoas falam muito menos sobre HIV/aids. É claro que não quero dizer que a covid-19 não seja um grande problema, mas também temos de levar em conta que pessoas estão morrendo de outras doenças, e pesquisas sobre tópicos importantes, como HIV/aids e câncer, não deveriam ter menor prioridade”, diz.
Próximos passos
A próxima etapa da pesquisa no Brasil é conduzir um ensaio clínico maior, com 60 pessoas, para tentar replicar o resultado. Savarino destaca que os pesquisadores também vão testar uma ferramenta automatizada para o design personalizado de vacinas. “Espera-se que isso possa potencializar o sistema imunológico, que é uma etapa necessária caso algumas células infectadas permaneçam após os tratamentos farmacológicos”, explica o médico.
Para ele, uma vacina terapêutica eficaz vai impulsionar a pesquisa sobre a cura do HIV, porque pode aumentar a atividade dos tratamentos medicamentosos que estão sendo investigados. No momento, é impossível fazer uma previsão de em quanto tempo a ciência alcançaria uma cura para o vírus e a doença, mas, segundo Leila, no que depender dos pesquisadores, “faremos tudo o que está ao nosso alcance e o mais rápido possível”.
Por Ludimila Honorato
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