Não basta voltar à normalidade. Um Estado engessado, ineficiente e capturado por grupos de pressão será incapaz de oferecer respostas aos estragos de longo prazo da pandemia de covid-19 nas contas públicas, no mercado de trabalho e nos setores produtivos. A saída não é ampliar os gastos, mas fazer com que os recursos sejam bem aplicados, e que a arrecadação não sobrecarregue os mais pobres. Este são os argumentos centrais de uma proposta de “agenda pós-pandemia”, cuja primeira parte será publicada hoje pelos economistas Marcos Lisboa, Marcos Mendes, Laura Muller Machado, Ricardo Paes de Barros e Vinicius Botelho.
Para se esquivar da polarização entre desenvolvimentistas e liberais, alas com diferentes visões sobre o tamanho e o papel do Estado na economia, os autores do documento propõem uma agenda pós-covid focada no aumento da eficácia das políticas públicas e no enfrentamento dos problemas crônicos do Brasil.
Marcos Lisboa, presidente do Insper (instituição de ensino superior com sede em São Paulo) e secretário de Política Econômica de 2003 a 2005, no começo do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, afirma que decidiu coordenar a elaboração do documento ao observar que o debate sobre o enfrentamento econômico à pandemia estava focado no aumento dos gastos. “A discussão não estava entrando no problema principal, que é a dificuldade do Estado de realizar de forma eficaz tanto a arrecadação quanto o gasto público.”
O texto dos economistas alerta que o País entrou “fragilizado” na pandemia. “Embora tenha virado moda falar em expansão dos gastos e das políticas públicas, o Brasil não está em condições de fazê-lo. Estamos andando sobre gelo fino e com alto risco de perder o controle da nossa dívida pública, o que nos legaria décadas de inflação alta, instabilidade cambial e estagnação do crescimento econômico. Ao querer expandir a despesa pública para ajudar os mais pobres, poderemos prejudicá-los, expondo-os à falta de emprego e de oportunidades de melhora na qualidade de vida.”
Implementação
Embora as sugestões de reformas possam ser lidas como um programa de governo, Lisboa afirma que elas não foram feitas com nenhum político em mente, e que em tese podem ser adotadas por qualquer corrente ideológica. “Vai depender muito se de fato (o político) está comprometido com a melhora das políticas públicas ou com os interesses das corporações organizadas”, diz o economista. “Nosso papel é trazer os dados e evidências. Como implementar, aí é uma questão da política.”
Um aspecto enfatizado na proposta de agenda pós-pandemia é a necessidade de mudar o foco das discussões entre distintas correntes de economistas. O documento afirma que o debate econômico no Brasil “tem se perdido em polêmicas que ignoram nossos problemas mais profundos”. “A controvérsia usualmente contrapõe desenvolvimentistas, que defendem a necessidade da intervenção do Estado para promover o crescimento econômico, e liberais, que criticam o tamanho excessivo do poder público e as suas intervenções fracassadas. (…) Esse debate, no entanto, ignora a relevância de se fazer um bom desenho da política pública e de seus instrumentos para que sejam eficazes e levem aos objetivos pretendidos.”
Tópicos
A primeira parte da proposta de agenda, à qual o Estadão teve acesso, analisa “qualidade do gasto e tributação”, e tem capítulos dedicados ao temas como baixo crescimento, alto gasto público, baixo aprendizado, desigualdade, proteção a pessoas de baixa renda, inclusão produtiva e socorro a Estados e municípios.
O trabalho apresenta dados que mostram que, em comparação com outros países emergentes, o Brasil aplica mais recursos e obtém menos resultados positivos – por exemplo, nas áreas da educação e da redução de pobreza.
Ao tratar do sistema tributário, os economistas propõem mudanças para torná-lo “mais justo para a sociedade, mais neutro para os investimentos e menos danoso ao ambiente de negócios”. Para eles, as distorções na arrecadação de impostos contribuem para reforçar as desigualdades sociais. “No Brasil, não somos apenas ineficientes na alocação dos gastos públicos, mas também na forma como tributamos os mais ricos.”
O trabalho traz críticas às políticas de cobrança seletiva de impostos, com diferentes alíquotas a depender dos produtos de consumo sobre os quais incidem. “Esse mecanismo não olha para o comprador, mas para o produto comprado, ou seja, não importa se quem está adquirindo o produto essencial é alguém de alta ou baixa renda. Na prática, isso faz com o que o Estado renuncie a muito mais do que o necessário para beneficiar aqueles que precisam.”
Outro aspecto criticado é o fato de, no Brasil, os impostos se concentrarem mais nas empresas do que nas pessoas físicas. “Ao tributarmos o lucro quando apurado, não é possível diferenciar quem e quanto cada sócio ficou mais rico. Ao adotar um sistema misto, cobrando-se uma parte antecipadamente da pessoa jurídica e outra parte após a distribuição, seria possível uma tributação proporcional.”
Renda mínima
Para o economista Marcos Lisboa, o Brasil pode acabar prejudicando os mais pobres se as politicas sociais gerarem aumento da carga tributária. “Assim o País cresce menos, gera menos emprego e fica mais pobre”, disse em entrevista ao Estadão. Veja abaixo os principais trechos.
Das mudanças propostas no documento, quais são as que mais gerariam resistências? E de onde viriam?
Tem muitas resistências. Esse sistema distorcido que a gente tem, tanto no gasto quanto na arrecadação, é o resultado de pequenos grupos de interesse que se beneficiam. Por exemplo, o Sistema S (formado por Sesc, Sesi e Senai) é uma contribuição compulsória que vai para entidades privadas. Deveria ser opcional. Outro exemplo: a tributação sobre a renda depende do tipo da empresa, não da renda pessoal. Se eu sou pensionista de um fundo de pensão que investiu em empresas grandes, a minha aposentadoria vem de um lucro fiscal tributado em 34%. Se eu estou em uma empresa do Simples, com lucro presumido, vou pagar só uns 10% de tributação sobre a renda, mesmo que eu ganhe R$ 1 milhão por ano. A alíquota de contribuição é dada pela renda das empresas, e não das pessoas, e isso gera inúmeras distorções. Isso é tratar pessoas iguais de maneira diferente e garantir pequenos privilégios para diversos grupos. Cada grupo desses resiste a uma reforma republicana que trate os iguais como iguais.
Em vários países, a crise provocada pela pandemia acendeu o debate sobre a implantação de uma renda básica universal para os cidadãos, por exemplo. No Brasil haveria como se fazer isso?
Em 2003, o Ministério da Fazenda propôs unificar programas de transferência de renda que já existiam e focalizá-los nas famílias mais pobres. Isso gerou muitas críticas da esquerda a essa proposta, que acabou virando o Bolsa Família. Acho bom que esse debate volte. Outra discussão é se seria melhor transferir renda para todo mundo, seja pobre ou rico, e aumentar um pouco os impostos dos ricos. Tem alguns problemas com esse desenho alternativo. Arrecadar imposto tem impacto no bem-estar social e cria distorções sobre a economia. Para cada real que se arrecada, isso tem um custo para o País em termos de produtividade, crescimento e renda. Outro problema é o fato de que o nosso sistema tributário é repleto de distorções. Aumentar a carga tributária sem resolver essas distorções significa ampliar os impactos negativos da política tributária.
Os dados sobre educação expostos no documento apontam que o Brasil, proporcionalmente, está entre os países que mais gastam em educação, mas com desempenho inferior a quem investe menos. Por quê?
O Brasil aumentou muito o gasto com educação, mas os indicadores de aprendizado não melhoraram no ensino médio. Não estamos tratando dos problemas de gestão. E tem muitas experiências bem-sucedidas no Brasil, mas todas passaram por mudanças na gestão. Esse é um debate muito difícil no Brasil.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Por Daniel Bramatti
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