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Covid-19: A tragédia do Século 21

Em três meses, a covid-19 matou no Brasil mais do que outras doenças, catástrofes naturais, tragédias e mazelas urbanas, como a violência – problema endêmico no País. Com 50.058 mil vítimas até ontem e com a transmissão do coronavírus em crescimento acelerado, a pandemia se consolida como uma das piores crises sanitárias da história.

O Estadão reuniu dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, de 1996 a 2020, e de catástrofes, como guerras, atentados, tempestades, enchentes e outras pandemias e epidemias para comparar o tamanho da atual tragédia. O rastro de letalidade da covid-19 supera o deixado por armas de fogo, acidentes (de trânsito, aéreos e marítimos), doenças que protagonizaram epidemias recentes da história, como a aids e a dengue, e até mesmo por enfartes.
“E ainda não chegamos nem na metade da covid-19”, afirma o virologista Maulori Curié Cabral, professor do Departamento de Virologia, do Instituto de Microbiologia da Universidade Federal do Rio (UFRJ). Ele afirma que ainda é cedo para fazer comparações.

“Ainda estamos no começo da doença, em fase de curva achatada, em que não se sabe quando e como vai acabar a pandemia. Depois que terminar é que poderemos ver o total de mortes e comparar”, afirma Cabral. Especialistas têm apontado ainda indícios de subnotificação de mortes em algumas regiões do País, motivada pela falta de testes e atraso nos diagnósticos.

Descoberta em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, a covid-19 chegou ao Brasil provavelmente no fim de janeiro. O primeiro caso oficial de um brasileiro contaminado pelo coronavírus Sars-CoV-2 foi registrado em 26 de fevereiro. Em quase quatro meses, já há mais de 1 milhão de infectados – equivalente a 0,5% da população brasileira. A primeira morte foi registrada em 17 de março: um morador de São Paulo, de 62 anos, com outros problemas de saúde.

Desde então, já morreram mais pessoas em decorrência de covid-19 que por algum tipo de isquemia no coração, como enfarte, entre janeiro a maio de 2019: 46,5 mil, segundo dados do Ministério da Saúde. Doenças relacionadas ao sistema circulatório, como enfartes, AVCs e hipertensão arterial são a principal causa de morte no País.

A covid-19 causou mais vítimas no Brasil em 95 dias que as armas de fogo mataram em 2017. Naquele ano houve o maior número de ocorrências do tipo nas últimas três décadas: foram 48,4 mil óbitos (inclui assassinatos e suicídios). A violência é um dos problemas sociais que mais preocupam a população, tanto pela agressão quanto pela imprevisibilidade.

Em comparação com as mortes em acidentes de trânsito, aéreos e navais (30 mil, em 2019), a covid-19 matou quase o dobro. Tanto as mortes por armas quanto os acidentes são classificados como óbitos motivados por “causas externas”, no registro de letalidade no Brasil. Isso é: não provocadas por doenças.

As causas externas formam o quarto grupo com mais óbitos do País: 140 mil no ano passado. Entram na classificação, também, a violência policial, agressões, conflitos, explosões, mortes em hospitais por complicações, entre outras. Se somarmos, para comparação, as vítimas fatais desse grupo de março a junho do ano passado – período aproximado da pandemia atual -, foram 46 mil óbitos. Menos, portanto, do que a covid-19 no mesmo período.

Grandes tragédias

No Brasil, a soma das mortes de 17 tragédias recentes não chega nem perto do que a covid-19 matou. Juntas, elas vitimaram 3.537 pessoas. A conta reúne os mortos soterrados com os rompimentos de barragens em Brumadinho (2019) e Mariana (2015); os de quatro acidentes aéreos – dois da TAM em Congonhas (1996 e 2007), da Gol (na Serra do Cachimbo, em 2006) e do time da Chapecoense (na Colômbia, em 2016); os de três deslizamentos e das enchentes, no Rio (2011), em Caraguatatuba (1967) e Santa Catarina (2008); os dos desabamentos, incêndios e explosões dos edifícios Joelma (1974) e Andraus (1972), da Boate Kiss (2014), do Gran Circus (1961), da Vila Socó, em Cubatão (1984) e do Plaza Shopping (1996); do naufrágio do Bateau Mouche (1989) e no massacre do Carandiru (1992).

Nos últimos quatro anos, 1,3 milhão de pessoas morreram anualmente no País. A principal causa foram doenças do aparelho circulatório: 360 mil em 2019, em que entram enfartes, problemas decorrentes de hipertensão arterial, AVCs, entre outras. O grupo dos tumores, do câncer, está no segundo lugar, seguido pelas doenças respiratórias – em que entram as pneumonias e as gripes, como a influenza tipo H1N1. Foi essa última que protagonizou a pior pandemia gripal da história, em 1918, que ficou conhecida como a “gripe espanhola” – que não foi originada e difundida pela Espanha, apesar do nome.

No ano passado, enfartes mataram 116 mil – um terço do total de óbitos do grupo de doenças do aparelho circulatório. Mas se isolar o total de casos de janeiro a junho, são 56,8 mil óbitos em seis meses, quantidade que a covid-19 deve ultrapassar antes de fechar o quarto mês no País.

Outra pandemia de início de século

A morte por covid-19 entra em uma categoria específica na classificação internacional de causas de óbito. Doença infecciosa viral, ela acomete nos quadros graves o sistema respiratório – grupo que é o terceiro maior motivo de falecimentos no País: 161 mil vítimas, em 2019. As gripes e as pneumonias são um subgrupo e provocaram 84 mil mortes.

Dez anos atrás, elas mataram 53 mil – em 2009 foi registrada a pandemia do H1N1, apelidada inicialmente de gripe suína, que se iniciou no México. O vírus era da mesma família que o da gripe espanhola, de 1918.

A pandemia da covid-19 deve marcar o início do século 21, assim como a gripe espanhola marcou o começo do século 20 e outras epidemias definiram suas eras. Fases da história de catástrofe, despovoamento e transformação social, movidas pela reação humana por sobrevivência. “Epidemias sempre ocorreram na história da humanidade, com impacto na vida cotidiana das populações. Uma das lições é a colaboração e a coordenação, da liderança na condução dessa grande tarefa de controlar o surto da pandemia e, principalmente, solidariedade entre grupos, países e regiões”, diz a epidemiologista Maria Rita Donalisio Cordeiro, do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas (Unicamp).

Para ela, a desigualdade social impulsiona a propagação da covid-19. Com a expansão do coronavírus dos centros para periferias, áreas onde vivem populações vulneráveis, há aceleração na velocidade de disseminação.

Crise histórica. A peste negra, ou peste bubônica, é considerada a maior tragédia sanitária da história. No longínquo século 14, uma bactéria do rato transmitida para o homem, pela pulga, dizimou pouco mais de 20% da população – foram mais de 70 milhões de mortos entre 1347 e 1351. É mais do que muitas guerras e tragédias da humanidade. No Brasil, mortes causadas pela doença, de 1899 a 1907, foram decisivas para a criação da Fiocruz, no Rio, e do Instituto Butantã, em São Paulo.

No Brasil, a taxa de letalidade em casos graves de covid-19, que são os testados atualmente, está em 5,2% e indica uma possível falha no enfrentamento à epidemia: a falta de identificação dos casos, avaliam cientistas e médicos infectologistas. Nesse patamar, se metade da população brasileira (algo em torno de 105 milhões de pessoas) fosse infectada pelo coronavírus de uma vez, 5,4 milhões morreriam.

Por Ricardo Brandt

Estadão Conteúdo

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