Em um apartamento de classe média do Paraíso, zona sul de São Paulo, os seis moradores contraíram o novo coronavírus em março. Em uma semana, a família ficou pela metade, pois o pai e dois filhos não resistiram. Um deles era um porteiro aposentado de 62 anos que se tornou a primeira vítima da doença no Brasil no dia 16.
Hoje, a mãe, de 84 anos, e os dois filhos restantes, com média de 60 anos, estão recuperados da doença e tentam recomeçar a vida. Um dos desafios é o noticiário diário que atualiza a dor. Outro drama é a solidão. Pelo medo da contaminação, parentes e vizinhos evitam visitas ao apartamento grande e confortável.
Algumas famílias das primeiras vítimas da covid-19 no Brasil relatam a dor da perda revivida quase diariamente com o avanço da doença. Traumatizadas, elas confessam também medo excessivo de contaminação. Outras observam a trajetória de quem passou como força e inspiração para tentar dar a volta por cima, mas todas lamentam a falta do ritual da despedida. Velórios e funerais de pacientes de covid-19 não são recomendados pelo Ministério da Saúde desde 25 de março.
A enfermeira Ana Paula da Silva conta que a dor mais intensa desse período de quarentena está ligada à falta do adeus para sua mãe, Juraci Augusta da Silva, uma das primeiras profissionais de saúde vitimadas pela doença.
As roupas levadas para a vítima não foram utilizadas e o caixão foi lacrado. Apenas os parentes mais próximos compareceram ao cemitério São Pedro, na zona leste de São Paulo. A última vez que as duas tiveram contato foi no momento da internação. “Não tivemos oportunidade de despedida. Mesmo sendo da área da saúde e entendendo que a morte é um processo natural, sinto muito falta de dizer ‘vai com Deus, fique em paz'”.
Com mais de 25 anos de trabalho na área da saúde, dona Juraci, mineira de Montes Claros, atuava como técnica de enfermagem em um hospital público da zona leste paulistana. Por causa dos seus 72 anos, ela seria afastada por pertencer ao grupo de risco da covid-19. Além disso, era transplantada renal e hipertensa. “Ela deveria ter sido afastada antes. Acho que demoraram um pouco”, protesta a filha. Dona Juraci era uma mulher independente e morava sozinha. Ninguém mais na família se contaminou.
Máscaras em casa
Os três sobreviventes do apartamento no Paraíso seguem à risca as recomendações de isolamento social, pois temem uma nova infecção. O virologista Paulo Eduardo Brandão, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), afirma que a reinfecção é uma probabilidade real quando se estudam os outros coronavírus, mas casos comprovados pelo novo coronavírus ainda estão pendentes. “A ideia de que as pessoas criam anticorpos e se tornam imunes depois de infectadas é mais consistente para vírus como sarampo e rubéola, por exemplo. Mas não para os coronavírus”, explica.
Os cuidados com higienização na casa da primeira vítima de covid-19, que antes eram rigorosos, se tornaram quase uma obsessão. O trauma foi tão grande que eles usam máscara até dentro de casa. Embora seja a principal forma de lazer da família, a televisão faz com que as lembranças da tragédia sejam reavivadas frequentemente. “Todas as notícias são sobre isso. A gente não consegue esquecer ou pensar em outra coisa”, diz um dos irmãos, que está desempregado.
A solidão pesa bastante na casa. Vizinhos contam que perceberam certo distanciamento de alguns familiares. Só os irmãos que vivem em outros endereços levam comida e remédios.
Parentes da primeira vítima da covid no Rio de Janeiro também se sentem discriminados. “As pessoas pensam que a gente pode transmitir a doença”, disse um sobrinho de dona Cleonice, empregada doméstica de 63 anos que morava em Miguel Pereira e também morreu em março. Ela trabalhou dez anos na mesma casa no Alto Leblon, zona sul da cidade. Depois de cuidar da patroa que voltou com problemas respiratórios da Itália (o teste confirmou que se tratava de coronavírus), ela começou a sentir falta de ar na segunda-feira. Em dois dias, foi hospitalizada, entubada e morreu. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Por Gonçalo Junior
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