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Reconhecimento facial no Metrô teria ‘consequências desastrosas’, dizem advogados

Advogados especializados na legislação brasileira de proteção de dados avaliam que é correta a ação cautelar ajuizada pela Defensoria Pública de São Paulo, em parceria com outras cinco instituições, para cobrar informações do Metrô de São Paulo sobre a criação de um sistema de câmeras com reconhecimento facial. O sistema custará R$ 58,6 milhões e pode atingir 3,7 milhões de passageiros.

Apesar de a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) permitir o uso de imagens para fins de segurança pública, o Metrô, segundo os especialistas, precisa detalhar como os dados coletados dos passageiros serão protegidos.

Na cautelar impetrada na Justiça, a Defensoria de São Paulo, a Defensoria Pública da União e as organizações não-governamentais Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Intervozes, ARTIGO 19 e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos cobram os estudos prévios do Metrô para avaliar o impacto esperado da implementação do sistema e os riscos de usá-la no transporte coletivo.

Na ação, os autores também questionam quais os sistemas de segurança serão adotados para impedir o vazamento das imagens e dados dos passageiros. A Justiça acolheu o pedido e determinou que o Metro apontasse riscos e a ‘motivação pública’ do contrato.

Avaliação dos especialistas em LGPD

Em linhas gerais, os advogados especialistas em LGPD concordam com os argumentos da cautelar.

Luiz Felipe Rosa Ramos, lembra que a tecnologia de reconhecimento facial é uma das mais polêmicas no âmbito da discussão sobre privacidade.

“Por um lado, alguns defendem sua eficácia em termos de prevenção em segurança (no ano passado, identificaram um suspeito de homicídio no meio do carnaval baiano com o uso da tecnologia), mas, por outro, aponta-se uma alta taxa de erros e um certo viés em desfavor de segmentos da população historicamente discriminados”, ressalta Ramos, que é sócio da Advocacia José Del Chiaro.

Ramos lembra que São Francisco, na Califórnia, “uma das mecas da tecnologia”, anunciou no ano passado o banimento do seu uso enquanto a China tem aprofundado a adoção do reconhecimento facial.

Polêmicas à parte, ele lembra que a LGPD permite o uso das imagens e o tratamento de dados “para fins exclusivos de segurança pública”. “Mas essa exceção deve obedecer a requisitos rigorosos, como não ser realizada exclusivamente por pessoa de direito privado ou sem a tutela de alguma autoridade governamental”, explica o especialista.

As medidas adotadas, além disso, devem ser proporcionais e limitadas. “Por exemplo, o alcance da tecnologia não deve se dar em áreas para além do necessário para a segurança e não deve haver captação de outros elementos (como áudio), bem como as imagens não devem ser utilizadas para outras finalidades”, afirma Ramos.

Ele lembra que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados, criada pela LGPD, terá o papel fundamental de emitir opiniões técnicas ou recomendações sobre temas ligados à segurança pública. “Além disso, no ano passado, a Câmara criou uma comissão de juristas para elaborar anteprojeto de legislação específica para o tratamento de dados pessoais no âmbito de segurança pública.”

Para a advogada Poliana Banqueri, especialista em LGPD, a questão da privacidade antecedem a adoção da LGPD. “É o que ocorre neste caso em que o Metrô coleta dados para reconhecimento facial faltando, porém, com a devida transparência sobre a finalidade no tratamento dos dados, que são sensíveis”, diz Poliana.

“Com a LGPD as obrigações se tornam mais claras.”, diz a advogada do Peixoto & Cury Advogados

Segundo ela, apesar da legalidade do uso de imagens para proteção à vida, é preciso que o Metrô garanta que os dados não sejam passíveis de vazamento e tratamento discriminatório dos usuários. “Ou mesmo a simples utilização para fins comerciais sem consentimento dos usuários.”

Poliana lembra que, em 2018, a ViaQuatro (concessionária da Linha 4 do Metrô) sofreu ação civil pública pela utilização de tecnologia de reconhecimento facial com objetivo de reconhecer o gênero, faixa etária e emoções dos usuários expostos à publicidade veiculada, inclusive comercial. “A Justiça determinou que a concessionária cessasse ‘a captação de imagens, sons e quaisquer outros dados através de câmeras ou outros dispositivos envolvendo as denominadas portas digitais'”.

Renato Valença, vai na mesma linha. Apesar de reconhecer que o uso da tecnologia e da inteligência artificial seja uma tendência irreversível, o advogado indaga: “Até que ponto a almejada segurança não coloca em risco outros direitos fundamentais dos milhões de usuários do Metrô, como a privacidade e a própria integridade de sua identidade?”

Valença, que também é especialista em LGPD do Peixoto & Cury Advogados, lembra que a biometria facial – obtida a partir de características únicas das pessoas, como a distância entre os olhos, tamanho e formato do queixo e comprimento do nariz – forma um conjunto de informações que identifica, de maneira única, uma pessoa. “Por princípio, segundo a LGPD, o uso dessas informações necessitaria do consentimento do titular desses dados”, explica o advogado. “O consentimento pode ser dispensado em algumas hipóteses, como, por exemplo, quando o uso dos dados sensíveis tiver a finalidade de proteção à vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiros. Esse deveria ser o embasamento legal invocado pelo Metrô.”

Entretanto, Valença concorda que, mesmo com tal embasamento, a grande questão relaciona-se à segurança dessas informações coletadas. “Onde, por quanto tempo, sob quais circunstâncias, e com que nível de proteção esses dados tão sensíveis estarão armazenados?”, questiona. “Por quanto tempo? Quem terá acesso a eles?”

Segundo o advogado, um vazamento acidental ou acesso não autorizado tem potencial de enorme impacto na vida privada dessas pessoas. “As novas tecnologias parecem nos levar a um caminho que permitirá cópias forjadas desses dados biométricos, e as consequências podem ser desastrosas, como o roubo de identidade.”

Lucas Paglia, entende que o Metrô tem a obrigação de minimizar os possíveis efeitos de um vazamento de dados. Segundo ele, o Metrô pode alegar que a transparência é baseada em segurança para os usuários.

“Há um legítimo interesse baseado na segurança dos passageiros, mas, a partir do momento em que a lei entrar em vigor, esse legítimo interesse tem que ser explicado. É preciso dar transparência ao assunto para o usuário final”, ressalta Paglia, que é sócio da P&B Compliance.

Felipe Carteiro Moreira, advogado da área Cível, lembra que há pouco mais de um ano, o próprio IDEC ajuizou ação civil pública contra a ViaQuatro, concessionária responsável pela administração da Linha 4 – Amarela, para buscar indenização por danos coletivos de R$ 100 milhões pelo uso de câmeras de reconhecimento facial nas entradas dos vagões de trens, sem prévio consentimento ou aviso dos usuários.

“Diferentemente daquele caso, no processo ajuizado contra o Metrô, não se busca, ainda, o recebimento de indenização. As entidades que encabeçam a ação, em verdade, visam a obtenção de informações relativas ao funcionamento do sistema a ser implantado nas estações de Metrô para, em momento oportuno e se for o caso, adotarem as medidas judiciais cabíveis”, avalia Moreira, do Rayes & Fagundes Advogados.

Segundo ele, o uso de câmeras de reconhecimento facial em benefício da segurança pública, embora autorizado pela LGPD, deve se destinar estritamente ao atendimento do interesse público, tendo em vista a potencialidade de lesão à privacidade dos cidadãos.

“Na Europa, por exemplo, o uso recorrente de tecnologias de vigilância em ambientes públicos tem sido objeto de escrutínio pelas agências nacionais de proteção de dados que, inclusive, já fixaram precedentes para a imposição de sanções contra agentes que se valem, indevidamente, de câmeras de reconhecimento facial”, diz ele.

Polêmica criminal

O tema também é polêmico dentre os criminalistas. Mestre em Direito Penal e Direito Processual Penal, Daniel Gerber ressalta que “enquanto ideia” é plenamente favorável ao sistema de reconhecimento facial, mas contesta a adoção do sistema no campo prático. “Em teoria, isso se traduz num tipo de segurança muito bem-vinda em uma sociedade qualquer, mas não acredito que tenhamos desenvolvido no nosso cotidiano mecanismos de segurança que efetivamente garantam a não-utilização dos meus dados faciais por terceiros”, diz o criminalista. “Então, enquanto não estivermos efetivamente seguros de que o meu rosto não será clonado por terceiros, este reconhecimento acaba se tornando um problema talvez mais grave do que aquele que se busque solucionar”.

Para Daniel Bialski, criminalista especializado em Direito Penal e Direito Processual Penal, a questão é confiabilidade do sistema. “Pelo menos a tecnologia que temos visto não é cem 100% confiável porque alguns sistemas reconhecem a face e outros, por exemplo, a íris dos olhos.”

Para Bialski, primeiro é preciso se certificar da eficácia do modelo adotado. “Eu sou favorável em todas as searas ao desenvolvimento e a aplicação das tecnologias que a gente tem à disposição, seja facial, seja manual, seja digital, mas, para você ter 100% de segurança e de certeza, é necessário que o sistema e que as informações sejam absolutamente seguras”, diz o advogado. “Da mesma forma que nas investigações criminais, o reconhecimento digital não pode dar azo a dúvidas.”

Por Luiz Vassallo

Estadão Conteúdo

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