A menina Juliana, de 12 anos, desenvolveu medo de chuva, de muito barulho. Quando está nervosa, vomita compulsivamente. Letícia, de 7 anos, se tornou uma menina agressiva e fica apavorada toda vez que a avó e o pai saem para trabalhar com medo de que eles estejam “indo para a lama”. Rafael, de 12 anos, escreve cartas sobre como está triste, com saudades do tio, e passa por tratamento psiquiátrico e psicológico depois que começou a se mutilar, cortando os próprios braços.
As crianças (os nomes são fictícios) refletem, talvez de modo mais expressivo, um quadro que afeta toda a população de Brumadinho (MG). Um ano após o rompimento da barragem de rejeitos da Vale que deixou 270 mortos, a cidade está adoecida. E mal se reconhece.
“Só de estar aqui a gente já relembra a tragédia. A sede da Associação de Moradores do Córrego do Feijão foi usada para guardar os corpos até eles serem encaminhados para o IML. O salão comunitário, onde fazíamos as festas da comunidade, passou a ser o ponto de atendimento da Vale e de doações. A escola foi dormitório dos bombeiros. A igreja católica foi usada como base de operação, o campo, pelos helicópteros como heliponto, tudo isso por mais de três meses”, afirma Jeferson Santos Vieira, de 21 anos, presidente da associação.
O estudante de Direito perdeu na tragédia uma tia e a avó, que lhe criou como mãe. A avó era cozinheira da pousada Nova Estância, que foi arrastada pelo mar de lama. “Ficar nesse lugar é difícil. O tempo todo tem caminhão passando, tem ônibus, o barulho é intenso o dia todo. Isso deixa a gente muito irritado. Aqui era super tranquilo, até os passarinhos estão diminuindo”, diz. “Mas nos primeiros meses era pior. Eu não posso ouvir barulho de helicóptero que fico estressado.”
O que Jeferson relata é algo que está sendo sentido por toda Brumadinho. De acordo com dados da Secretaria Municipal de Saúde, houve um aumento da procura por atendimento psicológico e psiquiátrico, a ponto de a prefeitura ter de contratar mais desses profissionais.
Remédios. Da equipe de saúde mental que hoje tem 39 profissionais, 24 foram contratados depois da tragédia. De janeiro a novembro do ano passado, o consumo de antidepressivos cresceu 56% e o de ansiolíticos, 79%, ante o mesmo período de 2018. As tentativas de suicídio foram de 41 para 51.
A menina Juliana, moradora do Córrego do Feijão, perdeu uma tia na tragédia e muitos vizinhos. A avó dela não consegue “sair do dia 25”, como contou a mãe de Juliana, e a garota começou a passar mal logo depois da tragédia. Dois dias após o rompimento da barragem, uma sirene foi acionada de madrugada na região, por ter sido detectado um risco de rompimento de mais uma barragem. Os moradores, já assustados, tiveram de sair correndo de suas casas.
Naquele dia, conta a mãe, ela vomitou sem parar. E o problema voltou a se repetir com frequência. Os pais chegaram a procurar um gastropediatra e fizeram uma endoscopia na garota, mas não encontraram nenhuma explicação física. “É tudo psicológico”, resigna-se a mãe.
Em outra comunidade, o Tejuco, que absorveu toda a movimentação de tráfego de Brumadinho nos dias seguintes à tragédia, depois que a principal via da cidade, que liga a zona rural à zona urbana foi destruída pela lama, vive o garoto Rafael.
Da varanda de casa, ele consegue ver onde ficava a barragem e apontar a direção do sítio do tio, totalmente soterrado com a lama. A mãe de Rafael era muito próxima de um primo, criado com ela como um irmão, e ainda está profundamente abalada com a perda. Ela depende de comprimidos para dormir e se manter de pé ao longo do dia.
Com o tempo, o menino também começou a adoecer e a cortar os braços. “Um dia, ele pôs uma blusa de manga comprida, mas estava um calorão, eu estranhei. Dali um pouco, a diretora da escola me chamou e corri lá. Cheguei lá e ele estava sangrando”, conta.
A população teme que as pessoas de fora da cidade já não entendam o que eles estão passando. “A gente sente que as pessoas já esqueceram. É um adoecimento que não tem parâmetro e a gente não sabe onde vai chegar”, diz Christiane Passos, secretária de Desenvolvimento Social de Brumadinho.
A angústia da espera pelos 11 não localizados
“Quando o povo de Mariana morreu, nós não demos a devida importância. Se a gente tivesse gritado por Mariana, Brumadinho não teria acontecido. Por isso hoje caminhamos com essa luta, porque para a gente essas pessoas eram muito especiais.”
A declaração é da professora Nathália de Oliveira, membro da Avabrum, associação que foi criada pelos familiares das vítimas e atingidos pelo rompimento da barragem. Ela é irmã de Lecilda de Oliveira, que era analista de operações da Vale e estava dentro do refeitório quando a barragem se rompeu. Lecilda tinha 49 anos, quase 30 de empresa, e faz parte do grupo de 11 vítimas que ainda não foram localizadas ou identificadas.
Desde o início do ano, com as chuvas intensas que atingem a região, o desespero aumentou. Chegou-se a cogitar uma redução nas operações de busca. “Isso aí foi a morte para a gente. O seu Geraldo morreu mais um pouquinho nesse dia. Ele ajoelhou no chão, pôs a mão para o céu e comoveu todo mundo em uma sala, ao falar: não pare de procurar a minha Ju. Foi muito difícil esse momento”, lembra.
Geraldo é pai de Juliana Resende, que era analista administrativa da Vale. Ela, então com 33 anos, e o marido, Dênis da Silva, com 37, morreram na tragédia, deixando dois gêmeos, de apenas dez meses. Dênis foi achado logo no começo, mas ela, ainda não. “A angústia da espera chega a ser enlouquecedora. Momentos de choro, tristeza, esse turbilhão de sentimentos, são praticamente diários”, afirma Josiana Resende, irmã de Juliana. Ela também trabalhava na Vale, na enfermagem, e estava de folga no dia.
“Esses 11… As pessoas pensam que é um número pequeno. Os bombeiros não estão salvando eles, não há mais o que fazer por eles. Os bombeiros estão nos salvando”, diz Nathalia.
Entre as vítimas não encontradas, a única que não trabalhava na Vale era Maria de Lurdes da Costa Bueno. Quando a barragem se rompeu, ela estava na pousada Nova Estância com a família – o marido, Adriano Ribeiro da Silva; os filhos dele, Luiz e Camila Taliberti; e a mulher de Luiz, Fernanda Damian de Almeida, grávida de cinco meses de Lorenzo. Todos foram achados, menos ela.
A filha de Maria de Lurdes, Patrícia Borelli, de 37 anos, acompanha as buscas com um nível a mais de angústia, à distância, de Nova York, onde mora. Patrícia veio ao Brasil com o irmão, na esperança de que logo a mãe também seria achada. “Consegui ver a marca onde a onda de lama veio, alta, mais de dez metros. Aí consegui visualizar a força do que ocorreu e por que encontraram os outros, mas não ela”, diz. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Por Giovana Girardi, enviada especial
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