Quase três anos após apagar das redes sociais uma foto na qual aparecia jantando com o então juiz Sérgio Moro, o que lhe rendeu críticas e ameaças, o historiador Leandro Karnal afirma ao jornal O Estado de S. Paulo que personalidades como Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol trazem elementos “de um certo tenentismo” à política brasileira.
O comentário foi uma referência ao movimento oposicionista de oficiais do Exército na década de 1920. “Esse tenentismo é reformador do País. Seja na década de 1920, com tenentes conservadores ou de esquerda, seja quando esses tenentes se tornaram generais, em 1964. Esses tenentes continuam querendo transformar o Brasil, para o bem e para o mal.” Karnal também diz que a crença em um “papel messiânico” do Estado une o presidente Jair Bolsonaro ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Como avalia o primeiro ano de Bolsonaro? Em entrevista ao ‘Estado’ em 2018, o sr. identificou um sentimento de “vingança” na sociedade. Ele permanece?
Quando Bolsonaro assumiu, houve esse sentimento. Muitos diziam: “Acabou, é o fim, não vai existir mais vida civilizada”. Acho que a grande surpresa é que Bolsonaro vem cumprindo o que prometia. Ele fez uma conversão pessoal porque não era um liberal há 30 anos, não era adepto de um Estado mínimo, não era leitor de Adam Smith, com certeza.
Em artigo recente, o cientista político Carlos Pereira afirmou que “é possível que as reações da sociedade às transgressões de Bolsonaro possam fortalecer ainda mais a democracia”. O sr. concorda com essa ideia?
O governo Bolsonaro tem feito declarações que não se espera de um governo. Uma coisa é o discurso, outra coisa é a prática. A democracia, arranhada nos discursos e em algumas práticas, sobrevive. Nós temos instituições. O presidente do Supremo está lá exercendo seu poder. Acho que tanto a esquerda quanto o governo Bolsonaro, mais conservador e de direita, acreditam no papel messiânico do Estado. O Estado vai salvar a família, vai tirar os pobres da miséria, vai dar emprego, vai impedir o comunismo, vai implantar o socialismo: o Estado tem papel messiânico, vai redimir a sociedade e vai apontar o caminho. Na verdade, o que une Bolsonaro e Lula, entre tantas coisas diferentes, é a crença no Estado.
O presidente não poupa ataques à imprensa e adota discurso vitimizante, dizendo que leva “pancada” de todos os lados. É uma espécie de “coitadismo”?
Acho que Bolsonaro erra ao atacar a imprensa. O Estadão era atacado pelo governo Lula por ser conservador, ou por ser antipetista, agora é atacado pelo governo por ser de esquerda ou antibolsonarista. O principal sintoma de que a democracia vai bem é uma imprensa atacada. Se os governos começarem a dizer que a imprensa está agindo corretamente, aí a democracia terminou.
A soltura do ex-presidente Lula criou uma expectativa de que a polarização seria reacendida. É este o cenário que vivemos?
A polarização nunca se apagou. As redes sociais apenas deram voz a ódios históricos e muito fortes. Esse é um país tradicionalmente violento. Acontece que as redes sociais deram muita voz (a esse sentimento). Mas a rua é menos polarizada do que a internet.
O sr. já foi alvo de críticas por causa de uma foto em um jantar com o então juiz Sérgio Moro. Como avalia a gestão dele no Ministério da Justiça? Ele acertou ao entrar para a política?
Em um mundo equilibrado, o ideal seria não ter se tornado ministro nem de Bolsonaro nem de qualquer governo. Tornar-se ministro cria pelo menos aquele problema da mulher de César (“não basta ser honesto, tem que parecer honesto”). Graças às revelações de conversas (pelo site The Intercept Brasil), vimos que (os processos da Lava Jato) não funcionaram dentro da perfeita isenção. Acho que esses processos poderiam ter ocorrido sem encontros regulares e troca de comunicações entre duas das três partes. Em todo caso, isso para mim é uma lição política: a esquerda sempre teve horror a Moro, já uma parte da população o tinha por herói, notavelmente a classe média brasileira. Todas essas coisas vêm a público e ele ainda é o ministro mais popular do governo.
Moro é um potencial candidato à Presidência?
Ele tem dito que não. Na tradição brasileira, isso significa possivelmente que sim. Acho que existem elementos da Justiça brasileira, de figuras como Moro ou Deltan Dallagnol, que são dotados de um certo tenentismo. Esse tenentismo é reformador do País. Seja na década de 1920, com tenentes conservadores ou de esquerda, seja depois, quando esses tenentes se tornam generais, em 1964. Esses tenentes continuam querendo transformar o Brasil, para o bem e para o mal. No caso do grupo de Dallagnol, ainda tem o elemento religioso, protestante, que é dotado mais ainda de uma ideia de missão e redenção.
Houve reações a Moro, como o fim da prisão em 2ª instância, a lei de abuso de autoridade. O garantismo jurídico foi reforçado?
Uma coisa é o debate jurídico se nós devemos ou não dar tamanha quantidade de segurança de direitos individuais previstos no artigo 5.º da Constituição. E se a tentativa de proteger o cidadão de uma injustiça não cria uma injustiça que possibilita ao criminoso agir com mais liberdade. Mas, quando o Congresso propõe isso, não é isso que está sendo debatido. É colocar uma pedra no caminho para obter melhores recursos, conseguir um ministério, mais verba. É um jogo político.
O sr. diz que hoje se considera um ‘isentão’. Há um caminho para o centro no Brasil?
A opção de centro é completamente fisiológica. A palavra “centro” ficou ruim. Assim como em 1985 se dizia que (quem era de) direita era a favor da tortura, o que não é verdade. Falta ao Brasil um partido que seja conservador no sentido clássico, de não se preocupar com costumes porque isso é de foro íntimo. Falta uma esquerda comprometida com o estado democrático de direito, que não elogie ditaduras ou medidas autoritárias. Falta alguém de centro que não seja fisiológico.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
Por Vinícius Passarelli e Eduardo Kattah
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